O que é Inteligência Artificial? (Parte 2)

Em novembro de 2022, iniciei esta série de posts sobre o que é inteligência artificial (IA). Na primeira parte, propus que os leitores identificassem a IA a sua volta, ou que viessem à sua cabeça. Argumentei que a dificuldade em entender esta tecnologia pode vir da falta de consenso do que ela é. Se decifrar a inteligência vem de uma longa discussão que perpassa diversas áreas, a sua “versão artificial” atrapalha ainda mais tarefa. Neste ínterim, sugeri começar por um resgate à história e expus brevemente a concepção do termo, mas alertei que seu provável início é anterior e que máquinas pensantes já povoam o imaginário a muito tempo. Assim, nesta segunda parte, também falarei de história, mas de outro tipo, as histórias criadas pela nossa imaginação.

A muito tempo que se imagina máquinas que pensam ou ganham vida. Na antiguidade, a Ilíada de Homero fala sobre cadeiras automotoras chamadas “tripés” e “atendentes” dourados construídos por Hefesto, o deus ferreiro coxo, para ajudá-lo a se locomover. No antigo mito grego, Ovídio reconta em suas Metamorfoses que Pigmaliano esculpiu uma estátua de marfim de uma bela donzela; a partir dela, Vênus dá vida a Galatea (Nilsson, 2009).

Aristóteles também idealizou a automação em “A Política”, falando que, com ela, cada ferramenta poderia executar sua tarefa por vontade própria ou percebendo a necessidade, fazendo desnecessário os servos dos mestres artesãos e os senhores de escravos. Muitos séculos depois, Leonardo da Vinci esboçou um robô humanoide em forma de cavaleiro medieval (Nilsson, 2009). Gottfried Wilhelm Leibniz e Blaise Pascal projetaram máquinas que mecanizavam a aritmética, que até então era domínio de homens instruídos chamados de “calculadores”; mesmo assim, ambos nunca afirmaram que eram dispositivos capazes de pensar (Buchanan, 2005).

Voltando para os autômatos fictícios, a boneca mecânica em tamanho natural, Olympia, canta e dança no Ato I de Les Contes d’Hoffmann (Os Contos de Hoffmann), de Jacques Offenbach (1819-1880). Karel Čapek, um autor e dramaturgo tcheco, publicou uma obra intitulada R.U.R. (Robôs Universais de Rossum) em 1920, na qual ele introduziu a palavra “robô”, que em tcheco denota “trabalho forçado” ou “trabalho penoso” (Nilsson, 2009).

Na literatura de ficção cientifica, a escritora Mary W. Shelley e seu companheiro, o poeta Percy Shelley, acompanhados do escritor Lord Byron e o médico John Polidori, hospedaram-se na Villa Diodati em Cologny, Suíça, durante o verão de 1816. Acredita-se que, de uma aposta sobre quem escreveria a história mais assustadora, Mary escreveu os primeiros rascunhos do Frankenstein e Polidori escreveu a primeira história moderna sobre vampiros, inspirando até mesmo o Drácula de Bram Stoker (Gordon, 2020). O “Frankenstein”, de Mary Shelley, trata-se da história de Victor Frankenstein, um cientista que cria uma criatura por meio de experimentos científicos, apenas para enfrentar as terríveis consequências de sua busca pela criação da vida. Por coincidência (ou não), a filha de Lord Byron, Ada Lovelace é chamada de a primeira programadora do mundo (Nilsson, 2009), o que pode ser mais uma evidência de como o pensamento mecanicista dominou a visão dos pensadores da época, tanto na literatura como na ciência.

Cansado das histórias de ficção em que os robôs eram destrutivos, Isaac Asimov escreveu diversas histórias sobre robôs, os quais tinham embutidos em seus cérebros positrônicos as “Três Leis da Robótica” (Nilsson, 2009) (o prof. Marcello Zappellini fala sobre elas neste post aqui). Porém, Shelley e Asimov não foram os únicos. Júlio Verne é outro grande conhecido da literatura clássica, mas também há L. Frank Baum, escritor de “O mágico de Oz”, com suas descrições de diversos robôs e o homem mecânico Tiktok de 1907 (Buchanan, 2005). Tiktok, hoje, é o nome de uma rede social, mas a descrição que autor atribuiu ao robô Tiktok remete muito ao que hoje identificamos como um homem mecânico: “extra responsivo, criador de pensamentos e de fala perfeita… Pensa, fala, age e faz tudo, menos viver” (Buchanan, 2005, p.54).

Ao longo da história, desde o trípode de Hefesto na Ilíada de Homero ao mito grego, do Frankenstein de Mary W. Shelley e as três leis de Isaac Asimov (Buchanan, 2005; Nilsson, 2009), a ficção tem servido como um dispositivo literário que estimula a reflexão sobre a essência da humanidade. Em alguns casos, essa influência manifestou-se apenas por meio de metáforas, como o “homem mecânico” de René Descartes; mas em outros, o pensamento mecanizado instigou filósofos como Leibniz a contemplar uma lógica para criar dispositivos pensantes (Buchanan, 2005).

A procura pela inteligência artificial, quixotesca ou não, começou na mente de sonhadores (Nilsson, 2009). Nils J. Nilsson, um dos pioneiros da Inteligência Artificial (IA), narra a história dessa disciplina em seu livro “The quest for Artificial Intelligence” (2009), destacando como a busca por essa inteligência teve origem em sonhos. A transição da imaginação para a realidade transformou a concepção de uma inteligência não humana e inorgânica em um campo científico estabelecido, conhecido como IA. O termo atraente foi proposto por John McCarthy durante a Conferência de Dartmouth em 1956, antes mesmo do desenvolvimento efetivo da tecnologia. A exploração da inteligência humana para replicá-la marcou esse momento entre um grupo de cientistas, assim como a criação e a natureza humana inspiraram o grupo de autores durante as noites na Villa Diodati, quando Mary Shelley concebeu seu Frankenstein (Gordon, 2020).

Apesar de o imaginário apresentar versões limitadas da inteligência não humana, ele conferiu credibilidade à visão mecanicista do comportamento e à possibilidade de replicação (Buchanan, 2005), não apenas na ficção, mas também no desenvolvimento da tecnologia de IA desde seus primórdios nos anos 1950 (Nilsson, 2009). Percebe-se, assim, que os sonhos do imaginário e dos visionários se misturam em um corpus de narrativas que moldam os medos e esperanças da tecnologia (Hermann, 2023). No entanto, como afirma Hermann (2023), a ficção científica não pode ser uma previsão ou avaliação tecnológica. Ao tomar a IA da ficção científica demasiado literalmente, e mesmo aplicá-la à comunicação científica, pinta-se uma imagem distorcida do potencial atual da tecnologia e a atenção é desviada das implicações e riscos da IA no mundo real. Estes riscos não têm a ver com robôs humanóides ou máquinas conscientes, mas sim com a pontuação, os nudges, a discriminação, a exploração e a vigilância de seres humanos por meio de tecnologias de IA através de governos e empresas.

Referências

Bruce G. Buchanan. (2005). A (very) brief history of artificial intelligence. AI Magazine, 26(4), 1059–1067. https://doi.org/10.1051/medsci/2020189

Gordon, C. (2020). Mulheres extraordinárias: as criadoras e a criatura. Tradução de Giovanna Louise Libralon. Rio de Janeiro: DarkSide Books.

Hermann, I. (2023). Artificial intelligence in fiction: between narratives and metaphors. AI and Society, 38(1), 319–329. https://doi.org/10.1007/s00146-021-01299-6

Nilsson, N. J. (2009). The Quest for Artificial Intelligence. In The Quest for Artificial Intelligence. https://doi.org/10.1017/cbo9780511819346

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