Crime, Sacrifício e Redenção 

A literatura de qualidade é grande aliada na compreensão dos dilemas humanos, pois torna possível a reflexão a respeito de temas variados, sob enfoque de personagens com diferentes características. As obras “Os Miseráveis” e “Crime e Castigo” têm em comum a relação dos protagonistas, Jean Valjean e Raskólnikov, com o crime e com a redenção. 

Seria demais pretensioso buscar catalogar personagens ou esgotar a análise de livros tão importantes e densos. Em obras de tal magnitude, cada personagem possui dilemas próprios, complexidades insanáveis, e, a cada releitura, o leitor surpreende-se com nuanças antes não notadas. 

Tive contato com as referidas obras, em mais de uma oportunidade, em épocas muito diferentes de minha vida. Deixo claro que a abordagem que pretendo realizar refere-se ao que mais me marcou e ao que está relacionado com minha área de interesse: o crime; a decisão sobre cometer o crime e a redenção após o delito. 

Caso você, leitor, ainda não tenha lido os livros citados, tentarei trazer os principais elementos de compreensão dos enredos, com cuidado para não o fazer perder o interesse em buscar, no futuro, a leitura do original. Caso já tenha lido uma ou as duas obras, será a oportunidade para relembrar alguns dos personagens e comparar as percepções que dos livros tivemos. 

As duas obras são contemporâneas (1862 – “Os Miseráveis”; e 1866 – “Crime e Castigo”). A russa (“Crime e Castigo” – Dostoiévski) tem como protagonista um jovem estudante de Direito da cidade de São Petersburgo – Raskólnikov. O jovem (característica pela qual o autor costuma nominá-lo), apesar de não ser de família rica, conta com o sacrifício e o empenho de sua mãe e de sua irmã para manutenção de seus estudos. 

O personagem é ambíguo, rejeita definições simplistas. Se, por um lado, é preguiçoso, pois, por diversas vezes, narra-se que ele se levanta, após 10h da manhã, além de não se preocupar em trabalhar, por conta dos estudos, para aliviar as despesas que a mãe tem consigo; por outro, demonstra caridade ao não hesitar em ajudar no funeral de um mero conhecido, o ébrio Marmeladóv. Foi a ajuda, no referido funeral, inclusive, que aproximou Raskólnikov de Sônia (filha do defunto), personagem que tem papel fundamental na trama (como veremos adiante). 

A reflexão de Raskólnikov sobre a justificativa para o cometimento de um crime é um dos pontos mais interessantes do livro, se não o central. O jovem elabora a teoria de que os homens estariam divididos entre ordinários e extraordinários. Os primeiros deveriam cumprir regularmente todas as regras que lhes são impostas, já os extraordinários não seriam limitados por qualquer norma, pois seriam portadores de desígnios superiores, uma espécie de emissários do bem e da virtude para a humanidade. 

Assim, sua teoria, basicamente, estabelece que os fins superiores conhecidos somente pelos seres classificados como extraordinários autorizariam a prática de qualquer meio para sua concreção, desde que esse meio, embora criminoso, objetive o fim inicialmente almejado. 

Eis um trecho que resume a teoria: 

Todas as pessoas são classificadas como “ordinárias” e “extraordinárias”. As pessoas ordinárias devem obedecer à lei e não têm o direito de infringi-la, exatamente por serem ordinárias. E as pessoas extraordinárias têm o direito de perpetrar quaisquer crimes e de infringir a lei de toda maneira, pelo próprio fato de serem extraordinárias (Dostoiévski, 2013, p. 296). 

Como ele próprio, Raskólnikov, não tinha certeza de a que classe de pessoas pertencia, resolve pôr à prova sua extraordinariedade. Então, munido de sua teoria e da esperança em ser extraordinário, como foi um Napoleão Bonaparte, assassina uma velha agiota que habitualmente lhe emprestava dinheiro. No momento do crime, a irmã da idosa aparece em cena, e é assassinada pelo jovem da mesma maneira – com golpes de machado. 

Todo o conflito psicológico vivido pelo protagonista, após o delito, é traduzido por Dostoiévski de forma primordial. O receio de não ser extraordinário para mudar os rumos da humanidade atormenta-o. O personagem vê-se prisioneiro dos próprios pensamentos, com medo, diante da possibilidade de ser descoberto, a qualquer momento, além da dúvida entre permanecer em silêncio ou entregar-se às autoridades. 

Em meio às suas angústias, intensifica a relação com Sônia – pobre moça que conhece quando ajudou gratuita e inexplicavelmente sua família com as despesas do velório do patriarca, o bêbado Marmeladóv.  

Sônia é o tipo de moça que mantém a pureza, apesar de estar na sarjeta – precisa trabalhar como prostituta para sustentar a si e a família. Provoca em Raskólnikov profundas reflexões sobre a vida após a morte e sobre a crença em Deus, fazendo-o refletir, de modo especial, sobre o milagre da ressurreição de Lázaro, operado pelo próprio Senhor Jesus Cristo.  

Sônia apaixona-se por Raskólnikov e convence-o a entregar-se à polícia. Após seguir os conselhos da moça, Raskólnikov é preso e enviado para um campo de trabalhos forçados na Sibéria. Sônia acompanha-o, provê-o de amparo material e espiritual.  

O sacrifício de Sônia toca a Raskólnikov e salva-o. Não se pode dizer que o jovem nunca houvera recebido amor em forma de dedicação voluntária e integral, pois sua mãe e sua irmã cumpriam esse papel antes de Sônia entrar em sua vida. No entanto, o Sacrifício de Sônia foi mais efetivo, pois veio acompanhando de apelo à regeneração espiritual. 

A inspiração Cristã da redenção de Raskólnikov fica evidente ao final do romance. O personagem passa por uma doença que o leva a ser internado em um hospital, onde passou “todo final da Quaresma e a Semana Santa” (Dostoiévski, 2013, p. 585). Foi ao fim desse período que  

A dialética cedera lugar à vida, e doravante sua consciência teria de seguir um rumo bem diferente. Havia um Evangelho debaixo do seu travesseiro. Raskólnikov o pegou maquinalmente. O livro pertencia a Sônia, era aquele mesmo livro no qual Sônia lera para ele a história ressureição de Lázaro (Dostoiévski, 2013, p. 588).  

Ao fim da obra, em suas últimas linhas, o autor deixa em aberto o futuro do personagem, já regenerado e redimido: 

Mas aí começa outra história, a história da gradual renovação de um homem, a de sua gradual conversão, de sua lenta passagem de um mundo para o outro, a história de como ele conhecerá uma nova realidade, antes completamente ignota. Isso poderia constituir o tema de outra narração, mas o nosso relato presente está terminado (Dostoiévski, 2013, p. 589). 

Inexplorado, portanto, ficou o futuro do criminoso redimido pelo sacrifício alheio. Quantas maravilhas poderia realizar? Replicaria o sacrifício em benefícios de outros? Viveria eternamente devotado à Sônia? À Mãe? À irmã? Todas essas possibilidades o autor deixou à livre imaginação do leitor. 

Poder-se-ia dizer que Victor Hugo, não houvesse escrito seu romance alguns anos antes, partira exatamente do final aberto de “Crime e Castigo” para descrever a força redentora do sacrifício e de seu potencial inspirador na redenção de quem se devotou ao crime. 

Jean Valjean, protagonista da obra francesa, é um miserável, preso, por furtar pão, para saciar a fome de sua sobrinha, e, por esse motivo, condenado a trabalhos forçados nas galés. Sua pena é estendida diversas vezes por tentativas de fuga. Após 19 anos de cumprimento de pena, obtém liberdade condicional. 

Fora do campo de trabalho forçado, sua vida não é fácil. A ficha de identificação pessoal que o remete à liberdade condicional fecha-lhe as portas para qualquer relação lícita que tente travar. 

A vida de Jean Valjean, entretanto, ganha novo significado ao encontrar um Bispo católico que aceitou recebê-lo em sua casa, partilhando com ele sua refeição e seus aposentos. A caridade praticada, entretanto, não foi suficiente para a redenção imediata do protagonista, que, aproveitando-se da situação de hospitalidade, saiu,  no meio da noite, subtraindo alguns objetos de valor do bispo (cálices e castiçais).  

Durante o furto, ao ser surpreendido, em sua fuga sorrateira, agrediu a vítima (o Bispo), que havia acabado de acordar. Perseguido pela polícia, foi trazido à presença do Bispo para a devolução dos bens.  

Foi, então, que ocorreu o fato que marca a história da trama, que só vai ser inteiramente explicada em suas páginas finais. O Bispo, ao receber o criminoso, afirmou aos policiais que havia doado os bens e que Jean houvera esquecido outros, os quais foram entregues de prontidão ao criminoso nos braços da polícia. Jean, obviamente, não compreendeu a atitude da vítima.  

Ao despedir-se do hóspede que lhe traiu a confiança, o Bispo proferiu as seguintes palavras: “Jean Valjean, meu irmão, lembre-se de que já não pertence ao mal, mas sim ao bem. É sua alma que acabo de comprar; furto-a aos maus pensamentos e ao espírito de perdição para entregá-la a Deus” (Hugo, 2014, p. 145). Jean, que não era religioso, a partir de então, passa a refletir sobre o destino de sua alma e sobre o seu comportamento. Talvez tenha sido a primeira vez em sua vida que tenha refletido sobre valores morais. 

De posse dos valiosos bens recebidos do bispo, muda-se de cidade e de nome e passa a explorar rentável atividade econômica. Por meio da criatividade e de trabalho duro, trouxe riqueza à pequena cidade em que passou a residir, garantindo emprego e salário a muitas pessoas e tornando-se um administrador eficiente e poderoso. Foi assim que se elevou ao posto de prefeito da localidade. 

Apesar da riqueza obtida, Jean nunca se esqueceu do débito que possuía com Deus e do episódio do Bispo que “comprou” sua alma. Demonstra tal sentimento de gratidão o hábito que mantinha na distribuição de esmolas e no trato cordial e digno para com todos os seus funcionários e os munícipes por ele administrados. 

Eis que surge na história a jovem Fantine. Mãe solteira, sustentava a filha com o salário que recebia da empresa de Jean Valjean. A filha era cuidada por um casal de aproveitadores, em uma vila vizinha (Os Thénardier), que cobravam caro pela estada da pobre criança, apesar de tratá-la como serviçal e exigir trabalhos não condizentes com sua idade e compleição física. 

 Após sofrer assédio, por um dos encarregados do agora prefeito Jean Valjean (que passara a utilizar o nome de Sr Madeleine), Fantine foi injustamente demitida. A injustiça não pôde ser evitada (posto que não diretamente presenciada) pelo personagem principal, que encontrou Fantine, posteriormente e ao acaso, em um antro de prostituição e na miséria, além de doente. Prostituía-se para manter a filha. 

Após resgatar Fantine daquela localidade, colocou-a em um local digno para recuperação de sua saúde, mas Fantine já estava próxima da morte. Foi quando a moça relatou-lhe a forma como chegou àquela situação, como deu-se a demissão injusta, falando-lhe acerca de sua pequena filha, Cosette, que precisava de seus cuidados e auxílio financeiro. 

Madeleine (Jean) promete à Fantine trazer-lhe sua filha, mas nesse momento descobre que outra pessoa havia sido presa como sendo Jean Valjean (que formalmente estava foragido). Sofre com a possibilidade de permitir que uma injustiça ocorra, então, vai até o tribunal e livra o pretenso Jean Valjean, assumindo sua real identidade. Sem contestar a punição a que estaria sujeito, mas colocando-se como responsável pela vida da jovem Cosette, Jean foge, antes de ser preso, e vai à procura da filha de Fantine. 

Jean não permite que a injustiça da condenação de quem se passa por ele se consuma, mas também não foge à responsabilidade de restaurar a injustiça cometida contra Fantine e sua filha Cosette. 

Entretanto, o esforço de Jean não foi suficiente para que Cosette reencontrasse a mãe, que morre. A partir de então, Jean oferece-se inteiramente como responsável pela vida e pelos cuidados da pequena criança. Replica o sacrifício que recebeu do Bispo em favor de Cosette. 

Escondendo-se da polícia, que está em seu encalço, desde que fugiu do tribunal, refugia-se em um convento, local em que trabalha como ajudante de serviços gerais em troca da educação da criança. É nesse local que Cosette passa sua infância e adolescência. 

Ao crescer, Cosette aproxima-se de Marius, jovem ligado a movimentos revolucionários na França, e por ele se apaixona. Enamorados, os jovens trocam promessas de amor eterno. Marius, ao participar de um motim com um grupo de amigos, envolve-se em uma batalha, é cercado, com seus companheiros, em uma barricada, e contido por forças oficiais. Envia, então, uma carta de amor a Cosette, que é recebida por seu pai, Jean. 

Jean, ao receber a carta e vislumbrar o risco a que está sujeito o amor da vida da filha adotiva, parte em direção à barricada para auxílio do jovem rapaz. No local, participa da batalha e, após a rendição do grupo rebelde, quando já não havia chance de permanecer lutando, foge com Marius, ferido, pelo sistema de esgoto da cidade.  

Após uma longa, arriscada, desgastante e tenebrosa passagem, pelos sistemas de esgoto, Jean salva Marius e leva-o para longe da zona de conflito. Salvo, Marius não sabe quem foi seu benfeitor. Após a recuperação do desgaste físico, decorrente da batalha de que participou, reencontra Cosette. Jean isola-se e, apesar dos insistentes convites, recusa-se a participar da vida do jovem casal, ou mesmo a habitar próximo a eles.  

Cosette e Marius casam-se. Graças a uma coincidência, Marius descobre que a pessoa que o salvou é Jean Valjean, pai de sua esposa. Ele e Cosette refletem sobre a entrega de vida de Jean Valjean em favor deles. Procuram Jean para agradecê-lo por ter se sacrificado e entregado a própria vida em função da deles. Encontram-no em seu leito de morte. 

Esse encontro é, em minha opinião, o ápice da trama. Jean tem suas boas ações (ou parte delas) reveladas. Recebe, como recompensa, amor, carinho e admiração de pessoas que lhe são caras, especialmente daquela que cuidou como filha por grande parte da vida.  

É tratado com distinção e extrema dignidade. Sua honra e valores são reconhecidos. Como resposta ao reconhecimento que de sua filha e de seu genro recebe, e já no leito de morte, Jean  

Caminhou com passos firmes até a parede, afastou Marius e o médico, que queriam ajudá-lo, tirou do prego o pequeno crucifixo de cobre que estava pendurado ali, voltou a sentar-se com toda a liberdade de movimentos, como se estivesse em plena saúde, e disse em voz alta, colocando o crucifixo em cima da mesa: – Aqui está o grande mártir. (Hugo, 2014, p. 1504). 

Na página seguinte, a zeladora do prédio em que Jean se encontrava perguntou a ele se queria a presença de um Padre. Jean, então, afirmou que já tinha um e mostrou-lhe o dedo, acima de sua cabeça, onde parecia ver alguém. O autor da obra arremata: “é provável, efetivamente, que o Bispo assistisse àquela agonia”. O Bispo referido é nada menos que o clérigo com quem Jean Valjean tivera contato, no início do romance, que, como seu intercessor, veio presenciar os frutos da virtude que plantara. 

O Bispo e Sônia regeneraram Jean e Raskólnikov, sacrificando-se em favor deles. Enquanto na obra russa a eficácia redentora do sacrifício (ou a descrição dela) restringiu-se ao personagem principal, na francesa ela floriu, continuou ativa e pujante durante toda a vida de Jean.  

O sacrifício de Sônia fez Raskólnikov entender que nenhum valor tem o amor à abstrata ideia de humanidade se não se é capaz de amar ao próximo, entregar-se e sacrificar-se por ele. 

O Bispo cativou Jean com a demonstração de que há uma vocação humana além das necessidades materiais. Jean compreendeu a ação do Bispo e viveu sacrificando-se, primeiro pelos funcionários e munícipes da pequena cidade em que era prefeito, depois por Cosette, sua filha adotiva. 

A prisão, de forma isolada, não foi capaz de regenerar qualquer um dos protagonistas. Apenas ações concretas de caridade, praticadas pelos coadjuvantes (Bispo e Sônia), puderam reorientar as vidas de Jean e de Raskólnikov.  

É possível concluir dos romances, ainda, que os atos de caridade, representados por verdadeiros sacrifícios, não estão desconectados do Verdadeiro Sacrifício, que redirecionou o curso da humanidade. A referência expressa, em ambas as obras, à inspiração do Sacrifício redentor de Cristo, diferencia o sacrifício simples (como aquele praticado por Raskólnikov ao ajudar com as despesas do velório do pai de Sônia) do sacrifício que redime.  

O Verdadeiro Sacrifício, então, não pode estar afastado do Verdadeiro Mártir, como dito expressamente por Jean Valjean, ao fim de sua vida, assim como “o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira” (Jo 15,4). O fruto da redenção só pode ser colhido se o sacrifício que o propicia ligar-se diretamente ao Sacrifício Redentor. 

REFERÊNCIAS 

JOÃO. In: Bíblia Sagrada. Tradução: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 3. ed. Brasília: Edições CNBB, 2019. 

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. Tradução: Oleg Almeida. 1. ed. São Paulo: Martin Claret, 2013. 

HUGO, Victor. Os Miseráveis. Tradução e notas: Regina Célia de Oliveira. Edição Especial. São Paulo: Martin Claret, 2014. 

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