Em busca do ethos público: será o Concurso Nacional Unificado uma alternativa para a seleção de novos servidores público com vocação para o serviço público? 

Aristóteles designou o termo ethos como a construção de uma imagem de caráter de um orador. Nesse sentido, o ethos aparece como os traços de caráter moral que o orador deve apresentar. Outro sentido que complementa o primeiro está relacionado a um hábito ou costume, como virtude e reflexões racionais baseada em valores e na experiência humana de por eles agir.  

O ethos, então, é caráter, modo de ser e forma de relação. Revela, também, que a “maneira de ser” depende de uma ação (hábito) e, portanto, não é algo dado, mas gerado pela própria ação. Em relação ao caráter moral, o ethos “carrega um plus de crítica, reflexão e liberdade. A atitude ética exige necessariamente justificação, argumentação, fundamentação” (Nunes, 2018, p. 975). 

No serviço público, o ethos refere-se aos valores e normas profissionais que orientam o comportamento dos servidores e a forma como interpretam e cumprem suas funções, enfatizando a importância de princípios de interesse público, equidade e justiça (Gomide et al., 2023). O ethos público ganha destaque no contexto dos servidores públicos ao entendermos que são eles que tomam decisões de impacto na vida de todos nós. Gomide et al. (2023, p. 77) destacam ser “fundamental que os quadros públicos sejam compostos por indivíduos plenamente cientes de seu papel na defesa do bem-estar coletivo […] Quando há esse tipo consciência, é possível dizer que servidoras e servidores estão dotados de um ethos público, que coloca o interesse coletivo como elemento central de atuação.”  

Marques Filho (2011) nos lembra que “a qualidade da prestação dos serviços públicos, para além do seu aspecto técnico, possui a dimensão funcional que está diretamente relacionada com o ‘como’ o serviço é entregue ou realizado”. Para ele, é dessa questão que “se faz necessário o renascer e aprimoramento do espírito de serviço público”, num sentido de ética do cuidar, de entender que os outros têm necessidades diferentes de nós. Portanto, o servidor-cuidador precisa ter uma motivação especial, fundamentada no ethos público. 

Mas como estamos efetivamente promovendo, incentivando, desenvolvendo e amadurecendo esse ethos público naqueles que estão nos representando, tomando decisões e prestando os serviços dos quais somos usuários? Como ter servidores públicos comprometidos com o ethos público enquanto caráter moral e hábito virtuoso? 

No Brasil, vemos o fenômeno da indústria e ideologia concurseira (Coelho, 2015, Fontainha, et al. 2014), e até mesmo da mídia, reproduzindo o senso comum da sociedade brasileira para a qual o objetivo do concurso público é promover o ingresso de servidores com salários acima da média do mercado e estáveis (Coelho, 2015). Assim, desconsideram o ethos público e sua relação com a vocação das pessoas para trabalhar em prol do bem público.  

A insuficiência de um ethos do serviço público, a distorção do uso da lógica meritocrática (Oliveira, Castro Júnior & Montalvão, 2022) e as disfunções do concurso prejudicam a contratação de servidores mais preparados, com maior aptidão para as funções públicas (Coelho, 2015) e que incorporam em si um significado do trabalho diferenciado dentro da Administração Pública.  

Trabalhar em prol do bem comum pode ser uma vocação, fonte de sentido existencial ou aptidão que não é para todos, ainda que muitos desejem a famosa estabilidade (Souza & Moulin, 2014). Coelho (2023) afirma que a parcela vocacionada está muito pequena perto do total de candidatos concurseiros. Como alternativa, Oliveira, Castro Júnior e Montalvão (2022) sugerem que os concursos públicos passem a priorizar as competências do cargo, principalmente comportamentais, considerando que, por vezes, os concursos aferem conhecimentos que não guardam relação com as atribuições do cargo e da organização (Gaetani & Coelho, 2023).  

No próximo domingo, dia 5 de maio, ocorrerá o primeiro Concurso Nacional Unificado no Brasil. Trata-se de uma nova proposta de seleção para contratação de servidores públicos federais, cujo um de seus objetivos é aprimorar os métodos de seleção, de modo a priorizar as qualificações necessárias para o desempenho das atividades inerentes ao setor público (Brasil, 2024).  

Será essa uma alternativa para identificar nos candidatos a vocação para atuar no setor público? Será possível identificar o ethos público por meio de um concurso, como sugerem Gomide et al. (2023)? Certa vez, um professor, grande mestre, me explicou que a busca por ações substantivas – como o ethos público –, a partir de uma racionalidade substantiva, pode se dar pelo intermédio de ações instrumentais…, mas como avaliar se realmente os nossos novos servidores-cuidadores terão esse olhar?  

Encerro esse texto como mais dúvidas do que respostas, mas com a (ainda) certeza sobre a necessidade de pensarmos estratégias para o amadurecimento da ética pública.  

Laís Silveira Santos (servidora pública desde os 20 anos) 

Referências  

Brasil. Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos. (2024). Concurso Público Nacional Unificado. Recuperado de: https://www.gov.br/gestao/pt-br/concursonacional .  

Coelho, F. S. (2015). Repensando os concursos públicos no Brasil: subsídios para discussão à luz da gestão de pessoas no setor público. In: Bassotti, I., Pinto, S., & Santos, T. (Org.). Uma nova gestão é possível. 1. ed. São Paulo: Edições Fundap. 

Coelho. F. S. (2023). Entrevista. As propostas para aprimorar concursos públicos no Brasil. nexo jornal, 01-04. Recuperado de: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/09/10/as-propostas-para-aprimorar-concursos-publicos-no-brasil .  

Fontainha, F. C. et al. (2014). Processos seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos concursos? Rio de Janeiro, RJ: Fundação Getulio Vargas. 

Gaetani, F., & Coelho, F. de S. (2023). A hora e a vez da modernização dos concursos públicos. nexo jornal, 01-04. Recuperado de https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/A-hora-e-a-vez-da-moderniza%C3%A7%C3%A3o-dos-concursos-p%C3%BAblicos

Gomide, A. A. et al. (2023). Guia referencial para concursos públicos: promoção do ethos público, realidade brasileira, inclusão, diversidade e direitos humanos. Brasília: Enap; MGI. 

Nunes, L. H. M. O controle e a punição salvarão a ética pública? Revista da CGU, v. 10, n. 17, p. 961 – 979, 2018. 

Oliveira, A. B. da S., Castro Junior, J. de L. P., & Montalvão, S. de S. (2022). O mito da meritocracia: academicismo e falhas metodológicas nos concursos públicos brasileiros. Revista De Administração Pública, 56(6), 694–720. 

Souza, S. A. D., & Moulin, M. G. B. (2014). Serviço público: significados e sentidos de um trabalho em mutação. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 17(1), 49-65. 

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