Virtudes para enfrentar a procastinação em quarentena: temperança e prudência

Eu só acho que ele (o dragão) só queria ser notado” – disse Billy (KENT, 1975).

Como lidar com a procrastinação que pode surgir com os desafios da quarentena? Para responder a essa pergunta, será feita uma breve reflexão sobre as virtudes em Aristóteles. Em especial, o foco do texto será em duas delas: a temperança e a prudência. Busca-se compreender se essas duas virtudes podem nos ajudar a lidar com o problema da procrastinação em tempos de pandemia. Para isso, primeiro serão feitas algumas definições básicas. Em sequência, serão apresentadas possíveis contribuições práticas.

Esse texto parte da hipótese levantada em “Desafios Da Produtividade Em Quarentena: O Problema Da Procrastinação” (leitura recomendada). Nessa reflexão, foi discutida a possibilidade de a quarentena estar dificultando a produtividade das pessoas, aumentando a procrastinação. O ato de procrastinar é entendido aqui como atrasar intencionalmente uma atividade, mesmo sabendo do potencial negativo disso (STEEL; KLINGSIECK, 2015). Ou seja, “deixar para depois” mesmo que isso possa gerar coisas ruins. No cenário da pandemia de COVID-19, a quarentena fez com que os indivíduos passassem a produzir em casa. Essa mudança pode gerar empecilhos para as atividades, favorecendo a procrastinação.

Em muitas ocasiões, esse problema acontece sutilmente, sem ser devidamente percebido. Além de postergarmos as atividades, também é deixado para depois o fato de que estamos postergando. Com isso, o problema cresce e toma proporções gigantescas, até que seja impossível não o notar.

Uma situação parecida foi mostrada pelo cartunista Jack Kent, em seu livro infantil “There’s No Such Thing As a Dragon” (Dragões Não Existem). Protagonizada por Billy Bixbee, a ilustração inicia com o garoto encontrando um pequeno dragão em seu quarto. Assustado, ele relata o acontecido para sua mãe, que responde – “Dragões não existem!”. A partir disso, quanto mais o dragão é ignorado, mais ele cresce. O dragão aumenta tanto seu tamanho que sai voando com a casa da família nas costas. Ao fim do livro, Billy mostra para seus pais que o dragão “só queria ser notado”, acariciando-o. Com isso, o dragão volta ao seu pequeno tamanho original (KENT, 1975).

Nessa breve história, Billy nos mostra que problemas aumentam sua proporção quando não os notamos, para evitarmos de lidar com eles. O mesmo acontece com a procrastinação, que pode se tornar um grande dragão um dia antes da entrega de um trabalho, por exemplo. Para lidar com esse processo, possíveis aliadas são as virtudes, definidas como traços de caráter admiráveis, adquiridos por experiência (ARISTÓTELES, 2014). Elas são hábitos que facilitam as boas decisões e as boas formas de agir no mundo. Cada virtude é utilizada para tipos específicos de ação. Para o enfrentamento da procrastinação, propõe-se a utilidade da temperança e da prudência.

A ação virtuosa se encontra no equilíbrio entre dois vícios – o excesso e a falta de algo (mediania). No caso da temperança é a prática do equilíbrio entre o excesso e a falta de prazeres. Portanto, está entre a licenciosidade – se permitir ter uma vida voltada para aproveitar prazeres e desejos carnais – e a rigidez – proibir todos os prazeres de modo rígido e intransigente (LANCTOT; IRWIN, 2010). A temperança está na parte mais básica da alma – se refere ao indivíduo em posse de si mesmo. Essa virtude está conectada diretamente com o processo de autorregulação necessário para lidar com a procrastinação.

Aquilo que o procrastinador deixa para depois é o sacrifício necessário para completar a atividade. Ou seja, troca-se o futuro pelo presente. Nessa atitude, há uma falha na autorregulação (SCHOUWENBURG, 2004). O hábito equilibrado e regulado é o oposto disso, encontrando-se na prática da temperança. O indivíduo temperante consegue restringir seus prazeres para atingir objetivos, sabendo que existem momentos certos para as coisas. Ele troca o presente pelo futuro de forma admirável. Em tempos de quarentena, o espaço produtivo muitas vezes está restrito ao seu próprio domicílio. Nesse ambiente, novas tentações e prazeres se manifestam de maneiras diferentes. A temperança é a virtude que irá ajudar a conter esses estímulos e romper o ciclo procrastinador que atrapalha a produção.

Há uma etapa muito importante que acontece antes e durante o hábito da temperança. Nessa etapa, é feita a distinção entre o momento certo e o errado para aproveitar os prazeres. Também é feita a decisão entre quais prazeres são bons e quais são ruins. Realizar essa deliberação do modo certo faz parte da virtude da prudência. Definida também como sabedoria prática, a prudência utiliza-se do intelecto para deliberar e realizar boas decisões. Ela decide qual a melhor intenção, para que possamos ajustar nossa motivação e realizar a ação necessária. A prudência nos ajuda a escolher os meios adequados para atingir os nossos fins. É, portanto, a matriz que guia as outras virtudes.

Ao lidar com a procrastinação é importante que haja prudência. Isso porque para decidir quais prazeres são bons, e qual o melhor momento para eles, é necessário ser prudente. A pessoa que consegue evitar a procrastinação parte de um conjunto de boas decisões. Por exemplo, escolher qual a atividade produtiva adequada para o momento, decidir quais prazeres devem ser evitados para que ela possa ser feita e reconhecer quais os momentos certos para o descanso. Todas essas decisões, e outras, precisam da prudência. Por causa disso, a temperança é guiada pela prudência.

Para lidar com a procrastinação, a prudência levará o indivíduo para um planejamento equilibrado. Ao planejar uma rotina, por exemplo, o sujeito prudente delibera sobre o excesso e a falta de prazeres. A partir da definição daquilo que foi planejado, cabe a temperança praticar a autorregulação necessária para atingir os objetivos. Porém, a cada situação, mesmo que durante a realização da rotina, a prudência pode intervir para redefinir os meios e os fins. A realização e adaptação dessa rotina pode resolver em grande parte o problema da procrastinação (DIEFENDORFF; RICHARD; GOSSERAND, 2006). Recomenda-se, para esse processo, a leitura do livro de Steel (2012), com o título “The Procrastination Equation”.

Em conclusão, propõe-se a utilidade das virtudes temperança e prudência para lidar com a procrastinação em quarentena. No delicado momento atual, muitas pessoas se encontram isoladas em seus domicílios. Essa mudança repentina afetou o domínio da produtividade. A procrastinação que se atenuou precisa ser notada e enfrentada, assim como o dragão de Billy. Nesse processo de adaptação e enfrentamento, a prudência e a temperança podem guiar o procrastinador para uma jornada produtiva, principalmente em tempos tão desafiadores.

Referências:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. São Paulo: Edipro, 2014.

DIEFENDORFF, J. M.; RICHARD, E. M.; GOSSERAND, R. H. Examination of situational and attitudinal moderators of the hesitation and performance relation. Personnel Psychology, v. 59, n. 2, p. 365-393, 2006.

KENT, J. There’s No Such Thing as a Dragon. Western Publishing Company, 1975.

LANCTOT, J. D.; IRVING, J. A. Character and leadership: Situating servant leadership in a proposed virtues framework. International Journal of Leadership Studies, v. 6, n. 1, p. 28-50, 2010.

SCHOUWENBURG, H. C. et al. Counseling the procrastinator in academic settings. American Psychological Association, 2004.

STEEL, P. The Procrastination Equation: How to Stop Putting Things Off and Start Getting Stuff Done. Harper Perennial. 2012.

STEEL, Piers; KLINGSIECK, Katrin. Procrastination. In: WRIGHT, J. D., The international encyclopedia of the social & behavioral sciences. 2 ed. Oxford: Elsevier, 2015. p. 73-78.

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