Ao longo de boa parte do ano de 2020, temos ficado em casa, mesmo que não o desejemos. A pandemia que atingiu o mundo mostrou a incapacidade do governo no combate a problemas graves de saúde pública, e o comportamento individual tornou-se a principal forma de evitar que a situação piore. Em se tratando de comportamentos individuais, então, questões éticas podem ser discutidas, e meu propósito é refletir brevemente sobre uma justificativa para ficar em casa.
Tal justificativa é bem simples: optamos por ficar em casa porque nos é útil fazê-lo. Mas “útil”, aqui, refere-se à corrente de filosofia moral que Jeremy Bentham criou no século XVIII, John Stuart Mill aperfeiçoou no XIX, e uma parte significativa dos pensadores do XX amaldiçoou: o utilitarismo.
Como filosofia moral, o utilitarismo oferece uma explicação bastante simples para nossas decisões éticas: somos seres submetidos ao prazer e à dor, afirmou Bentham; vivemos buscando aumentar o prazer e reduzir a dor em nossos atos, e qualquer ação que aumente o prazer ou diminua a dor é boa e moralmente admissível. Como disse o próprio Bentham, no mínimo essa ação não é má. Posto dessa maneira, o utilitarismo poderia justificar fazer o mal a outra pessoa apenas porque o agente é um degenerado que se sente feliz ao maltratar um inocente: se o prazer daquela pessoa viesse de torturar outra, isso seria uma boa ação, certo?
Não. Bentham deixou bem claro que o prazer da parte em questão é o critério para julgar moralmente sua ação, mas isso não significa que uma pessoa possa fazer tudo o que desejar, pois o utilitarismo é uma filosofia social. É preciso considerar não apenas a utilidade de um ato para si, mas também seu impacto sobre as outras pessoas, e Bentham afirma que a sociedade como um todo é que deve ter seu prazer maximizado. Se nosso torturador se sente feliz machucando outra pessoa, e esta sente dores horríveis, o ganho de utilidade de um é compensado pela perda e pela dor da outra pessoa, e a sociedade não maximiza o prazer. Assim, a fórmula de Bentham pode ser resumida em “maior prazer para o maior número de pessoas”.
É interessante observar que o utilitarismo é a única das grandes correntes da filosofia moral que não focaliza na ação individual, mas nos resultados dessa ação para os outros. A ética das virtudes de Aristóteles destaca o agente individual, o ser humano virtuoso porque prudente, porque encontra o “justo meio” entre o excesso e a escassez, e a ética deontológica de Kant supõe um princípio moral geral que é do interesse do indivíduo seguir. Mas o utilitarismo, se entendido a partir de Bentham, leva-nos a agir pensando nos resultados para o bem de todos.
Entretanto, é verdade que o utilitarismo possui múltiplas falhas; Stuart Mill, por exemplo, criticou Bentham porque este não distinguia entre prazeres, e afirmava que não se pode comparar o prazer de comer quando se tem fome com o de discutir sobre filosofia com amigos bem informados. Mas há um problema na linha de raciocínio de Stuart Mill: ele considera a utilidade do indivíduo, não da sociedade; dito de outra maneira, uma pessoa que abrisse mão de uma discussão filosófica para se dedicar a distribuir alimentos para os famintos age conforme Bentham sugeriu, mas não como Stuart Mill recomendaria. É claro que não se pode comparar “comer” com “dar de comer”, mas o alimento não pode ser simplesmente um prazer menor, como Stuart Mill parece crer.
O ser humano virtuoso ficaria em casa nesses tempos de pandemia? Talvez, mas se a virtude que mais lhe importar for a coragem, talvez ele prefira sair de casa e se expor (e expor os outros) ao contágio; o kantiano possivelmente ficaria em casa, mas porque veria nessa escolha uma regra geral. Já o utilitarista benthamita ficaria em casa porque isso traria maior benefício à maioria.
O utilitarismo não é capaz de dar conta de todos os problemas morais que nos atingem, mas isso não é razão para desconsiderá-lo, pois cada teoria moral possui suas falhas e seus pontos fracos. Também não responde a todas as nossas dúvidas, mas somente a fé é capaz disso, não a filosofia – e a fé só o faz para quem a tem. Mas em algumas situações, o utilitarismo dá conta de justificar um ato como bom, mesmo quando o agente sabe que, para seu maior prazer individual, o melhor seria sair de casa.