Henri Fayol, em busca de uma chave interpretativa para suas ideias

Em seu clássico livro Administração industrial e geral, em francês Administration industrielle et générale, antes de elencar seus famosos catorze “princípios gerais de administração”, Henri Fayol chama a atenção do leitor para o significado que assumiria a palavra princípio em seu texto. Porém, longe de apresentar uma definição precisa ou de fornecer qualquer referência à fonte em que se baseava, ele apenas advertiu que utilizaria o termo desvinculando-o da “ideia de rigidez” (Fayol, 1989, p. 43). 

Ainda que não tenha apresentado uma definição formal, o que de certo modo frustra nossa expectativa acadêmica, a advertência de Fayol serviu, pelo menos, para nos alertar quanto ao fato de que seu uso do termo destoava dos significados comuns catalogados em dicionários prevalecentes à época. De fato, no dicionário francês Larousse & Augé (1898), princípio aparece como: primeira causa, proposição elementar e fundamental, origem, regra moral ou fundamental de conduta, ponto de partida ou causa raiz daquilo que algo é, venha a ser ou que pode ser conhecido. Ao que parece, foi desses significados que Fayol procurou se distanciar tanto quanto possível.

Soto (2016) foi atento a esse fato, a ponto de concluir que, naquele livro, o que Fayol denominou por princípios “no son principios en estricto sentido, sino orientaciones de acción o reglas de comportamiento, quizá imprescindibles para la práctica administrativa y para la comprensión de la administración” (p. 113). Esse problema, diz ele, não estaria restrito a Fayol, mas aparece em diversos outros autores (clássicos) do campo que se valeram do termo em suas abordagens do fenômeno administrativo. Por isso Soto generaliza: “es posible que la manera que se ha comprendido el término principio en la teoría de la administración sea válida como una acepción en el lenguaje común” (2016, p. 99).

Essa interpretação de Soto (2016), contudo, não nos parece de todo correta. Ele acerta quando afirma que a palavra princípio entrou para o campo científico da administração com um significado da “lenguaje común”. De fato, não se pode prescindir do rigor conceitual em nosso campo. Porém, diante do aparato conceitual de que dispunha e do modo como pensava o fenômeno administrativo – administração como arte –, Fayol nos parece ter agido coerentemente. 

Os princípios que o autor francês defendeu para a prática e a teoria da administração não são “orientaciones de acción o reglas de comportamiento”, como supõe Soto (2016). Aliás, Fayol queria evitar essencialismos ou determinismos que pudessem induzir a uma visão estática do que seja o fenômeno administrativo em suas diversas formas de manifestação prática, pois, como disse, “não existe nada rígido nem absoluto em matéria administrativa”, uma vez que “quase nunca se aplicará o mesmo princípio duas vezes em condições idênticas” (1989, p. 43). 

Ora, uma afirmação como essa não deixa de causar incômodos, em especial se considerarmos que ela foi feita em um cenário em que a rigorismo da administração científica de Frederick Taylor e seus associados ganhava ampla divulgação e adeptos. À rigidez da ciência de Taylor e às suas correspondentes noções de medida e medição, Fayol, sem afastar da administração sua vinculação direta com política e justiça, propõe a ideia de medida em circunstância: em matéria de administração, “é necessário ter em conta circunstâncias diversas e variáveis, homens igualmente variáveis e diferentes e muitos outros elementos também variáveis” (1989, p. 43). Ou seja, o administrador é um ser em circunstâncias sempre mutantes, circunstâncias que exigem dele determinado modo de proceder. Ela não seria, como queria Taylor, uma ciência, mas uma “arte difícil” de ser exercida (1989, 43). Daí a proposição capital de Fayol: em matéria administrativa, “tudo (…) é uma questão de medida” (1989, p. 43). O destaque à palavra medida, “mesure” em francês, foi dado por ele no original (1917, p. 25). 

Essa passagem tem sido, no mais das vezes, ignorada em nosso meio acadêmico, fato que tem feito com que as ideias do engenheiro francês tenham recebido um peso bem menor do que merecem. O uso do termo medida em seu livro não foi fortuito. Aparece ao longo do texto em mais de quatro dezenas de vezes, em sua grande maioria com um significado predominante, mas ainda não devidamente explorado pelos estudiosos de sua obra. A chave interpretativa que aqui apresento, de maneira preliminar ainda, é a de que o termo deve ser visto em alinhamento com o pensamento clássico de justa-medida ou justo-meio. Dizendo de outra forma: em Fayol, a ação administrativa seria uma espécie de ação segundo a mediedade que as circunstâncias e os fins acordados exigem, ou seja, é um tipo de ação proporcional. Senão, vejamos.

Após afirmar que tudo em matéria administrativa é uma “questão de medida”, Fayol complementa esse ponto fulcral da seguinte maneira: 

“(…) tais princípios serão, pois, maleáveis e suscetíveis de adaptar-se a todas as necessidades. A questão consiste em saber servir-se deles; essa é uma arte difícil que exige inteligência, experiência, decisão e comedimento” (1989, p. 43). 

O leitor, porém, há de perguntar: como assim? Onde é que ele reforça esse ponto fulcral a que você se refere? Onde está a “medida”? Respondo: o problema está na tradução. No original, lê-se:

“Aussi les principes sont-ils souples et susceptibles de s’adapter à tous les besoins. Il s’agit de savoir s’en servir. C’est un art difficile qui exige de l’intelligence, de l’expérience, de la décision et de la mesure.” (Fayol, 1917, p. 25) (grifos em negrito meus) 

Como se pode verificar, os tradutores do livro do francês para o português optaram, nessa passagem e em outras, por substituir a palavra medida por “comedimento”, termo que é, de fato, um dos possíveis sinônimos utilizados para medida. A rigor, não há erro em assim se proceder. Contudo, “comedimento” retira não somente todo o vigor do significado que a palavra medida possui, mas também a afasta de uma das principais tradições do pensamento ocidental que enveredaram por especular sobre as artes “que se referem à justa medida, a tudo aquilo que é conveniente, oportuno e devido, a tudo que conserva o meio entre dois extremos” e que “se aplica a todas as coisas que se transformam”, conforme defendeu Platão em seu Política (passagens 284d-285c).

Em outra passagem, a opção dos tradutores foi por “avaliação das coisas”, como na seguinte: 

“A exata avaliação das coisas, fruto do tato e da experiência, é uma das principais qualidades do administrador” (1989, p. 43) (grifos em negrito meus). 

Em francês, temos: 

“Faite de tact et d’expérience, la mesure est l’une des principales qualités de l’administrateur.” (1917, p. 25) (grifos em negrito meus)

Ao longo de todo o texto traduzido, por exemplo, encontraremos medida como: senso de medida, quando o autor trata do princípio da divisão do trabalho (p. 45); medida, quando aborda a atribuição de responsabilidade durante a exposição do princípio da autoridade (p. 45); grau, quando trata do problema “centralizar versus descentralizar” no princípio da centralização (p. 57); proporção, quando procura definir as qualidades (inclusive qualidades morais) e os conhecimentos desejáveis em um “grande chefe” (p. 99). Essa diversidade de sinônimos distraem o leitor, retirando-o de uma linha interpretativa que confira sentido às reais preocupações do autor. Creio que visualizar suas ideias à luz da noção de justo-meio ou justa-medida revigora, em nossos dias, as reflexões sobre a prática administrativa.

Para o autor, “a iniciativa, a energia, a medida, a coragem das responsabilidades, o sentimento de dever etc. são também qualidades morais que dão grande valor aos agentes superiores da indústria”, isto é, aos administradores (1989, p. 107) (grifos em negrito meus). Diante dessa consideração, não cometeríamos exageros se, dando mais um passo dentro da vertente da justa medida, aproximássemos a proposição de Fayol da noção de phronêsis, de Aristóteles. Os tradutores não deixam de ter em consideração essa aproximação quando traduziram “medida” por “comedimento”. Melhor seria se tivessem usado a palavra “prudência”. Porém, como acertadamente disse Paul Ricouer, dificuldades, renúncias e resistências são inerentes à atividade de traduzir, causando no tradutor uma espécie de luto, e “é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir” (2011, p. 29).

Para finalizar, é importante deixar bem registrado: a aproximação de Fayol à tradição da “justa-medida” é, aqui, ainda especulação, mas especulação frutífera. Ela parte da ideia primeira de que o esclarecimento do significado do termo nos textos do autor tem sido ignorado pela imensa maioria dos estudiosos e, por conseguinte, não tem alcançado os bancos universitários. É chegada a hora, porém, de colocá-la abertamente, ainda que seja em caráter introdutório, como aqui faremos. Para Fayol, administrar é, acima de tudo, uma questão de medida, e não de medição. 

REFERÊNCIAS

Larousse, P.; Augé, C. (ed.). (1898). Nouveau Larousse illustré: dictionnaire universel encyclopédique.  Vol. 07. Obtido de: https://archive.org/details/nouveaularoussei07laro/page/32/mode/2up

Soto, L.A.C. Una revisión a los principios de la administración de Henri Fayol desde el concepto de principio. In.: Soto, L.A.C.; Bálcazar, Á.P.G. (2016). Marcos de análisis teóricos de la realidad administrativa. México: UNAM. p. 97-114.

Fayol, H. (1917). Administration industrielle et Générale. Paris: H. Dunod et E. Pinat, Editeurs.

Fayol, H. (1989). Administração industrial e geral. Tradução de Irene de Bojano e Mário de Souza. 10. Ed. São paulo: Atlas.

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