Redescobrindo “as três virtudes primárias” de Adam Smith

“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro e do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelos próprios interesses. Apelamos não à humanidade, mas ao amor-próprio, e nunca falamos de nossas necessidades, mas das vantagens que eles podem obter”.

É com esta máxima que Adam Smith arrebata sua Investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, lançada originalmente em 1776 e considerada por muitos como a obra fundadora da ciência econômica. Título imerecido porque ignora os fisiocratas franceses Anne Robert Jacques Turgot e François Quesnay, seu antecessor imediato Richard Cantillón e, especialmente, a monumental contribuição dos escolásticos e pós-escolásticos, que de tão numerosos, não me permitem citá-los um a um neste pequeno artigo.

Fato é que A riqueza das nações tem tamanha influência e foi tantas vezes mal interpretada que caracterizou permanentemente, e de forma injusta, Smith como um defensor do egoísmo ou egocentrismo. Talvez se possa dizer que era defensor individualismo, mas um individualismo à sua maneira, diferente do significado popular e digno de extensos ensaios.

O escocês, na verdade, tinha uma forma única de combinar o crescimento econômico dos países com a moralidade dos indivíduos, seu pensamento não pode ser equiparado aqueles defensores explícitos do egoísmo, como o objetivismo de Ayn Rand. Prova disso é sua primeira grande obra A teoria dos sentimentos morais, por tantas vezes ignoradas, vitima do próprio sucesso de Smith.

Publicada pela primeira vez em 1759, A teoria dos sentimentos morais consiste de uma série de reflexões, derivadas em grande parte da disciplina de filosofia moral que Smith lecionava na universidade de Glasgow, acerca da moralidade intrinsecamente humana. Nele, Smith diferencia os homens dos animais especialmente pelo sentimento de solidariedade e pela capacidade de cultivar o que chamou de “três virtudes primárias”.

O formulador da “mão invisível do mercado” entendia a solidariedade como uma sensibilidade em relação ao sofrimento alheio, oriunda da consciência de que, a qualquer momento, o próprio indivíduo que observa pode passar pela mesma situação. Já as três virtudes primárias eram explicitamente definidas como: Prudência, justiça e benevolência. Todas elas configuram condição sine qua non para o alcance da “excelência humana” e são dependentes entre si.

A prudência, para Smith, é definida como uma decisão ponderada, cultiva através do hábito de realizar o bem para si mesmo, seus entes mais próximos e seu entorno social. O hábito de realizar o bem demanda ações honestas, bem-intencionadas e precisas. Além disso o prudente é uma pessoa experimentada, que sabe medir riscos. A justiça é descrita como um compromisso individual e social de defender os indivíduos, suas propriedades, seus direitos fundamentais. O homem justo é aquele que busca o bem comum e não impõe prejuízo ilegítimo ao próximo em prol de ganho pessoal. Já a benevolência é tributária tanto da justiça quanto da prudência, só é possível com decisões arrazoadas e uma forte convicção moral de fazer o certo as pessoas certas. A virtude da benevolência é descrita como aquela que nasce do hábito da generosidade, que por sua vez nasce de ações individualmente desinteressadas, que visam a felicidade do próximo. O homem benevolente é o que tem auto-domínio o suficiente para fazer o bem ao próximo, pelo simples motivo de que é o certo a se fazer, mesmo que isso não lhe traga satisfação pessoal instantânea.

Para Smith, as três virtudes fundamentais se desenvolvem no âmbito individual, mas também nas relações humanas e, sendo o mercado um grande conjunto de relações humanas motivadas pela troca, as virtudes devem ser desenvolvidas também no mercado. É urgente redescobrir as virtudes fundamentais smithianas no contexto de uma sociedade de mercado que erode as relações sociais, atomiza os indivíduos e ignora, quando não despreza, o cultivo das virtudes, a dignidade humana e a busca pelos bens mais elevados, não materiais.

Aos que acusam Smith de ser uma espécie de antecessor do utilitarismo, defensor irrestrito do que viria a ser chamado de “capitalismo”, vale lembrar que Joseph Schumpeter o acusou de ser um “moralista” por jamais dissociar à economia da ética ou da política.

Smith, sem dúvida alguma, era um grande defensor do livre mercado e, em muitos aspectos do laissez-faire, mas nem por isso nutria simpatia automática pelo homem de negócios. Defendia a desregulação das trocas e das relações de trabalho pois acreditava que assim se alcançaria o interesse geral, em especial para os pobres, que mereceram muita atenção em seus escritos. Defendia, por vezes, a ação egoísta, mas por que essa criaria, mesmo que involuntariamente, um benefício coletivo.

A lição mais importante que deve ser aprendida a partir da união de A teoria dos sentimento morais com Uma investigação sobre a natureza e as causas das riquezas das nações é que as benesses do livre mercado não podem ser alcançadas em um vácuo de valores morais, pelo contrário, dependem do cultivo de virtudes, da solidariedade, de um forte sentimento ético. Apenas uma sociedade formada por indivíduos com bons julgamentos éticos, benevolentes, justos e prudentes está preparada e é merecedora da liberdade.

Referências:

SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. J. Richardson, 1822.

SMITH, Adam; STEWART, Dugald. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Homewood, Ill: Irwin, 1963.

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