Quando os desastres acontecem, as pessoas não são as únicas vítimas: reflexões sobre a ética dos desastres e a ética animal

Durante um desastre de origem natural, como inundações, secas, queimadas e furacões, geralmente os primeiros pensamentos que vêm à nossa mente – enquanto cidadãos comuns que não trabalham em áreas especializadas na gestão desse tipo de crise – são de que devemos proteger nossas vidas e propriedades ou bens, certo? Mas de que tipo de vida estamos falando?

Fonte da imagem: Petty Officer 2nd Class Loumania Stewart / U.S. Coast Guard / Reuters

Enquanto pesquisadora da área de Ética na Administração Pública, com foco na gestão de riscos e de desastres, me deparei algumas vezes ao longo da minha pesquisa de campo com relatos sobre pessoas que recusaram a deixar suas casas durante desastres, como a tragédia do Morro do Baú e cidades vizinhas que ocorreu em Santa Catarina em 2008. Em alguns dos casos, as pessoas se recusaram a deixar sua propriedade com medo de roubos e de abandonar os animais, como porcos, gado, etc. Esses relatos me chamaram atenção, inicialmente, pelo difícil dilema entre permanecer em sua casa e cuidar de tudo que foi construído ao longo de anos, correndo o risco de colocar sua própria vida em risco, OU deixar a propriedade para garantir a sua segurança? O que acontece com tudo que fica para trás e não pode ser retirado há tempo? Entre bens pessoais e patrimônio, cheios de histórias, também podem ser deixadas para trás outras vidas, que não necessariamente humanas…

Foi somente recentemente, morando temporariamente na Flórida nos Estados Unidos para conduzir outra parte da minha pesquisa, que a situação dos animais antes, durante e após desastres – principalmente furacões – e os diversos dilemas morais que podem surgir nessas tragédias ficou mais evidente para mim. Nos últimos dois meses (setembro e outubro), dois furacões atingiram a costa leste dos Estados Unidos e causaram muitos estragos e perdas de vidas humanas e não-humanas (Hurricane Florence e Hurricane Michael).

Durante o primeiro furacão (Hurricane Florence), uma reportagem me chamou atenção de forma especial: “Salvando animais de estimação sem permissão: boa samaritana presa após ajudar animais a sobreviverem ao Florence”. A reportagem explica que, no auge da tempestade, essa mulher salvou a vida de animais abandonados na Carolina do Norte e os levou para seu centro de resgate sem fins lucrativos. Contudo, foi presa porque não possuía as licenças corretas para cuidar dos animais: sua instalação não era legalmente registrada como abrigo. Além disso, ela também foi acusada de ter administrado drogas aos animais que estavam machucados sem possuir licença veterinária. (Em outra matéria é possível ver outros resgates sendo realizados: clique aqui.)

Após esse caso, passei a acompanhar outros relatos e reportagens que tratavam sobre animais durante desastres e tentar refletir sobre o aspecto ético presente nessas situações. Além disso, recentemente, Santa Catarina (meu estado natal e de pesquisa no Brasil) aprovou uma nova Lei que reconhece cães e gatos como seres sencientes, tal como ocorre em países como França, Portugal e Nova Zelândia. Sendo assim, quais tipos de assistências os animais devem receber em desastres? Como? E quais animais?

Também em outra reportagem sobre o mesmo Furacão, uma das entrevistadas conta que seu namorado optou por não evacuar a cidade, mesmo estando da rota do furacão: “Ele ficou porque temos cinco cavalos, um burro, dezenas de galinhas, dezenas de porcos e cinco cachorros. […] Encontrar abrigo para um cão ou gato já é difícil, encontrar abrigo para muitos animais grandes é muito mais complicado. […] Transportar esses animais é outro desafio.” Refletindo sobre como seria esse processo, a entrevista questiona “Como você só escolhe três dos seus cavalos para salvar? […] Você não pode escolher seus favoritos. Eles são como membros da família.” Algumas cidades possuem abrigos públicos específicos que aceitam animais domésticos, como cães e gatos. Mas o que fazer com os demais?

Essa reflexão e preparação precisa fazer parte da gestão de riscos e desastres, tanto por parte da população como dos gestores de emergências, uma vez que os animais correm o risco de morrer se forem abandonados durante as evacuações (planejadas ou não). Além disso, quando sobrevivem, os animais podem sofrem com traumas irreversíveis.

Vale lembrar também que, na maioria das vezes, os animais não escolheram “estar na rota” do desastre. Conforme destacado pela socióloga Leslie Irvine em seu livro “Filling the Ark: Animal Welfare in Disasters”, os seres humanos são os responsáveis pela maioria dos riscos enfrentados pelos animais e, assim, também devem ser responsáveis por melhores decisões sobre seu tratamento, como, por exemplo, por meio de diferentes políticas de evacuação e de utilização que os coloquem em risco, como para consumo e experimentos.

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