Teoria da Dádiva: dar, receber e retribuir

Vivemos na era da desatenção, sempre fazendo tudo de maneira superficial e descompromissada. Desatenção não significa apenas falta de atenção ou de concentração, mas sobretudo falta de cuidado, de zelo, de carinho. É estar no mundo e não cuidar dele. É conviver com as pessoas sem verdadeiramente interagir. É passar pela existência como um fruto que não é colhido e apodrece ao sol sem beneficiar a ninguém.

Por Alex Castro no livro “Atenção. Por uma política do cuidado.” (2019).

Vivenciamos a modernidade, eu, você, as pessoas em nossa volta. Vivemos em tempos modernos e nos deixamos seduzir pela modernidade com seu ar de libertação. Ela nos liberta de nossas obrigações, de nossas relações, de nossos laços. A sociedade moderna nos permite viver só, se assim desejarmos, nos permite não ter filhos, “escolher” nossa família… O mercado nos da a facilidade de sair de uma relação que não apreciamos e prontamente podemos ir à procura de outra, sem sermos julgados.

 Em um piscar de olhos a modernidade e toda a sua liquidez pode nos parecer algo encantador, entretanto, precisamos refletir sobre quem estamos nos tornando, qual é o nosso papel nesse mar líquido e como podemos manter nossa essência em um mundo onde estamos nos tornando cada vez mais dependentes de produtos e nos libertando de nossos laços. Proponho a utilização da teoria da dádiva como um mecanismo para mantermos e criarmos novos laços — ao invés de nos desfazermos deles.

Você já experimentou sentar ao lado de uma pessoa em um ônibus, avião, metrô? A maior parte das pessoas está “interagindo” com meus retângulos luminosos — como diria o escritor Alex Castro. Sugiro que sente ao lado de uma pessoa que não está “ocupada” e que dê sua atenção a ela. Sim, sua atenção. Em um mundo tão moderno, proponho que nossa atenção é uma dádiva em extinção. De início a pessoa pode até estranhar seu comportamento, não por ela não gostar do seu gesto, mas simplesmente por ela não estar mais acostumada a recebê-lo.

Certa vez sentei-me ao lado de uma senhora e conversamos por quase uma hora enquanto o ônibus ia do Centro da cidade até nossas casas. Chegando no ponto final, a senhora ficou tão agradecida que confesso que fiquei um pouco envergonhada, “de nada” — disse à senhora. Neste caso, aconteceu uma dádiva entre estranhos, cuja liberdade é grande e existe uma obrigação muito pequena, quase nula, daquela senhora retribuir à mim a felicidade que causei a ela. Não há sempre um retorno, pelo menos não um retorno mercantil, como estamos “acostumados”, o gesto em si foi a própria dádiva e a própria dádiva foi o retorno. Ao iniciarmos um novo ciclo: dar, receber e retribuir, rompemos o isolamento diário no qual nos colocamos e começamos a sentir nossa própria identidade.

No mercado, nos tornamos seres livres cada vez que quitamos nossas dívidas, comprei, paguei e o com isso sou considerada uma pessoa livre. A dádiva, por sua vez, busca a dívida. O desequilíbrio entre dar, receber e retribuir é o que faz o espiral ou ciclo continuar, buscando a espontaneidade e não o dever. Como exemplo entre dever e espontaneidade, podemos fazer uma reflexão acerta do imposto. De início ele pode parecer uma dádiva, “estou doando uma parte de meu salário para que o Estado ajude quem mais precisa”. Não deixamos nos enganar, o imposto é uma obrigação e não uma dádiva. Quebramos o princípio da espontaneidade e ademais, a doce ilusão nos coloca em posições confortáveis. Ao invés de espalharmos dádivas, ela nos da a falsa sensação de que o Estado já está o fazendo por nós.

Em tempos modernos, finalizo encorajando-os a praticar a teoria da dádiva, seja ela uma doação de sangue ou a doação de alguns minutos de sua atenção.

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