O que é inteligência artificial? (Parte 3)

Comecei esta série de posts aqui, falando sobre a criação do termo “inteligência artificial” na conferência de Dartmouth, focando nas palavras e no contexto científico. Na sequência, passei do histórico para a história aqui, mostrando que a inteligência artificial está no imaginário das pessoas a muito mais tempo, e não só na literatura científica. 

Mas, por que não escrever um texto simples e com um conceito completo do que é IA? A resposta, para mim, é que ainda não é possível. Muitos que tentam estão simplificando demais, pinçam só uma parte do todo, reduzem ou se perdem no caminho. A quantidade de conceitos distintos é imensa e, com o tempo, percebi que nem todos estavam equivocados. O que acontecia é que cada autor estava definindo a IA sob um ponto de vista, por uma perspectiva, ou simplesmente uma parte. Não é difícil perceber por que as pessoas estão confusas sobre o que é IA (exemplos aqui: estudantes e trabalhadores).

Há ainda outro agravante: a velocidade das mudanças. O professor Silvio Meira profetiza que logo “a inteligência artificial atingirá a complexidade da filosofia” (Meira, 2024). Considerando como marco temporal o lançamento do ChatGPT ao público em geral em 2022, como o boom da IA para o uso massificado, Meira afirma que “hoje estamos na idade da pedra lascada da IA, mas o futuro chega em 800 dias”. Não estou tão segura quanto a este prazo e linha de chegada (estou ainda mais incrédula após ler o livro “O culto da informação”1 *), mas a velocidade das transformações é inegável. Para dar alguns exemplos, de novembro de 2022 até hoje, o ChatGPT já atingiu a marca de 100 milhões de usuários (Meira, 2024); o GPT-2 de 2019, considerado pioneiro, demandou 1,5 bilhões de parâmetros e um custo de treinamento de US$ 50.000, mas apenas 3 anos depois, em 2022, foi lançado o PaLM, com 540 bilhões de parâmetros e um custo de US$ 8 milhões (Maslej et al., 2023). 

Estamos mesmo na era da pedra lascada da IA, as vezes perplexos e outras com medo, ainda aprendendo a lidar com nossas próprias invenções. Só que a diferença da nossa situação em comparação com os antepassados paleolíticos é que agora o ritmo das mudanças é medido, praticamente, em dias. Como acompanhar e entender tudo isso? E mais, como conseguir aprender a usar e aplicar a IA nas nossas vidas? Não faltam notícias sobre as alucinações, modelos black box e o mercado de trabalho do futuro. Mesmo assim, acredito que não carece agir no medo ou na tentativa e erro. Isto é, não precisamos sair por aí batendo com as “pedras” nas nossas próprias cabeças para ver o que acontece! 

Quando comecei a estudar o assunto a 3,5 anos, a falta de consenso e diferentes descrições do que é a IA me embaralharam demais. É pela minha experiência que optei por este longo preâmbulo e as partes I e II antes de entrar nos assuntos tecnológicos. Esta reflexão é minha sugestão para começar a desenvolver um senso crítico a fim de distinguir fatos de pretensões, tecnologia de campo de estudo, e também compreender os benefícios e limitações para “colocar os pingos nos i’s” quanto o uso consciente da IA. É por isso que é muito mais realista e útil olhar a IA no conjunto que buscar um conceito único.

Em primeiro lugar, ao entender a trajetória e o contexto, acredito que fica muito mais fácil compreender todas as nuances desse jovem campo (de mais ou menos 70 anos). Assim, como área científica, a IA é interdisciplinar e abarca tanto disciplinas recentes como a computação, cibernética e psicologia cognitiva, mas também remonta a estudos anteriores de filosofia. É nesta característica de campo científico que se busca compreender a inteligência humana para replicá-la (Franklin, 2014). A interdisciplinaridade, a meu ver, é um dos grandes trunfos da área. 

Depois, é preciso compreender a parte técnica ou a IA como tecnologia, pois ela já está em todos os lugares e até de forma invisível, integradas nos dispositivos (Kim et al., 2021). Neste âmbito, é necessário ter uma noção de quais tecnologias são desenvolvidas pelo campo de IA, visíveis ou não. Garanto que este entendimento pouco tem a ver com os conhecimentos técnicos dos programadores. Roszak, em 1988, contesta como a disseminação dos computadores pessoais criou uma crença na obrigação de incluir computer literacy na educação. Passado algum tempo, percebemos no nosso dia a dia que não é mandatório saber programar para conseguir usar computadores e dispositivos correlatos. A programação ficou para programadores e outros técnicos. Agora, fala-se de AI literacy. Mesma história, novos termos.

Dentro deste grande guarda-chuva do campo da IA, há diversas tecnologias e seus nomes, geralmente em inglês, nos ajudam a entendê-las de alguma forma. Por exemplo, nesta elucidativa entrevista, a professora Fei-Fei Li lembra que outro nome menos hype dentro da área de IA é o machine learning (aprendizado da máquina), que representa a maior parte das tecnologias de IA que conhecemos hoje. Basicamente, os machine learnings são modelos matemáticos construídos por computadores para que o programa possa interagir e aprender a fim de fazer previsões. Outros exemplos de ferramentas nos sistemas de IA são deep learningneural networkscomputer visionnatural language processing.

Na linha do entendimento da técnica para não técnicos, ajuda saber as categorias ou tipos de IA. A IA pode ser classificada de acordo com a natureza da inteligência que demonstra, abrangendo aspectos cognitivos, emocionais e sociais. Dessa forma, pode ser analítica, refletindo a capacidade de raciocínio, inspirada na inteligência humana ou humanizada, incorporando características que tentam imitar aspectos emocionais e sociais (Russell, S. & Norvig, P., 2022). 

Em relação à funcionalidade ou aos objetivos (na lógica tradicional é a chamada definição pela causa extrínseca), por um lado são definidos em comparação com os seres humanos ou uma racionalidade ideal, por outro, pelo raciocínio ou comportamento. Dessas duas dimensões, surgem quatro combinações possíveis: agir e pensar humanamente, e pensar e agir racionalmente. Os dois primeiros tipos de IA buscam uma inteligência semelhante à humana e envolvem estudos empíricos e psicológicos sobre o comportamento humano e os processos de pensamento. No caso do pensamento, busca-se entender o pensamento humano através da introspecção, experimentos psicológicos e observação do cérebro. A premissa é que, uma vez que a teoria da mente for suficientemente precisa, será possível expressá-la em um programa de computador. Os livros de ficção e o cinema usam a definição de uma IA baseado nos humanos e no raciocínio, ou seja, reflete sistemas que pensam como os humanos (Russell, S. & Norvig, P., 2022). 

Além disso, a IA pode ser categorizada conforme seu estágio de desenvolvimento: Estreita (Narrow AI), com habilidades específicas para tarefas limitadas; Geral (General AI), indicando uma inteligência mais ampla; ou Superinteligência, representando um nível de inteligência que supera a capacidade humana em todos os aspectos. Essa taxonomia fornece uma estrutura abrangente para entender as diferentes manifestações e evoluções da inteligência artificial (Russell, S. & Norvig, P., 2022). Hoje o que temos são sistemas de IA do tipo estreita (mesmo os que parecem mais inteligentes), como frase dos anos 1970 citada pela Fei-Fei, o algoritmo de IA de computador mais avançado ainda fará uma boa jogada de xadrez quando a sala estiver em chamas. 

Dentro IA Estreita, podemos classificar duas subcategorias com base em funcionalidade: a Inteligência Artificial de Máquina Reativa (RM) e a Inteligência Artificial de Memória Limitada (LM). A IA de Máquina Reativa (RM) consiste em sistemas que não possuem memória. Esses sistemas são projetados para executar tarefas específicas e operam apenas com os dados disponíveis no momento. Eles não têm a capacidade de lembrar resultados ou decisões anteriores. Exemplos incluem o IBM Deep Blue e o sistema de recomendação de filmes da Netflix. Além disso, muitos modelos de machine learning e deep learning também se enquadram nessa categoria.

Por outro lado, a IA Memória Limitada (LM) pode relembrar eventos e resultados passados. Esses sistemas monitoram objetos ou situações ao longo do tempo, usando dados do passado e do presente para tomar decisões. No entanto, eles não retêm esses dados em uma biblioteca de experiências de longo prazo. À medida que são treinados com mais dados, seu desempenho melhora. Exemplos de LM incluem assistentes virtuais como Siri e Alexa, bem como sistemas mecânicos autônomos como drones e robôs ou veículos autônomos.

Em resumo, sugiro entender a IA como um campo científico desenvolvendo diversas tecnologias que, se vistas conforme seus objetivos e funcionalidades, ficam muito mais acessíveis de compreender. O melhor mesmo é parar de chamar tudo de inteligência artificial, como marca o professor Michael I. Jordan. Além de nem tudo ser IA, a expressão denota que os sistemas são inteligentes como nós. Apesar das invitáveis comparação e o uso da inteligência e racionalidade humana como parâmetros, como mostrei acima, os modelos ainda estão longe de ser iguais a nós. Esta confrontação, entretanto, já é assunto para outro post.

  1. ↩︎

Referências:

Buchholz, L. (2024) 84% of employees are confused about what AI is – despite using it. UNLEASH. Disponível em: https://www.unleash.ai/artificial-intelligence/84-of-employees-are-confused-about-what-ai-is-despite-using-it/

Glover, Ellen (2024). Black Box AI. Builtin. Disponível em: https://builtin.com/articles/black-box-ai

Franklin, S. (2014). History, motivations, and core themes. In The Cambridge Handbook Of Artificial Intelligence (Eds. K. Frankish & W. Ramsey). Cambridge, United Kingdom: Cambridge University Press.

Kim, T. W., Maimone, F., Pattit, K., Sison, A. J., & Teehankee, B. (2021). Master and Slave: The Dialectic of Human-Artificial Intelligence Engagement. Humanistic Management Journal, 6(3), 355–371.

Lea, Kelly (2024). Students are still confused about AI. Wonkhe. Disponível em: https://wonkhe.com/blogs-sus/students-are-still-confused-about-ai/

Maslej, N., Fattorini, L., Brynjolfsson, E., Etchemendy, J., Ligett, K., Lyons, T., … Perrault, R. (2023). The AI Index 2023 Annual Report. AI Index Steering Committee. Stanford.

Meira, S. (2024). Estamos na era da pedra lascada da IA, mas o futuro chega em 800 dias. Brazil Journal. Disponível em: https://braziljournal.com/silvio-meira-estamos-na-era-da-pedra-lascada-da-ia-mas-o-futuro-chega-em-800-dias/

Microsoft. (2024). Work Trend Index: Microsoft’s latest research on the ways we work. Disponível em: https://assets-c4akfrf5b4d3f4b7.z01.azurefd.net/assets/2024/05/2024_Work_Trend_Index_Annual_Report_663d45200a4ad.pdf?utm_source=The+Shift+Newsletter&utm_campaign=e16c74e660-EMAIL_CAMPAIGN_2024_05_10_10_45&utm_medium=email&utm_term=0_-e16c74e660-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

MIT Sloan School of Management. (2021). Addressing AI Hallucinations and Bias. Disponível em  https://mitsloanedtech.mit.edu/ai/basics/addressing-ai-hallucinations-and-bias/

Pretz, K. (2021, 31 de março). Stop Calling Everything AI, Machine-Learning Pioneer Says. IEEE Spectrum. Disponível em: https://spectrum.ieee.org/stop-calling-everything-ai-machinelearning-pioneer-says

Roszak, Theodore. (1988). O culto da informação. Editora Brasiliense.

Russell, S., & Norvig, P. (2022). Artificial Intelligence: A Modern Approach (4th-Glob ed.). Pearson Series in Artificial Intelligence, 19-78.

ThinkingAllowed. Theodore Roszak, 1933-2011 – Cult of Information (complete) – Thinking Allowed w/ Jeffrey Mishlove. YouTube,10/07/2011.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Y4mzEvqsiuY

Young and Profiting. Stanford’s Fei-Fei Li: “The Godmother of AI” Unveiling Human-Centered Approach To AI . YouTube, 25/04/2024. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IePcaP5FY3Q

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