Ao longo da vida estamos sempre sendo testados do ponto de vista de nosso caráter, quando fazemos escolhas, agimos ou refletimos sobre a nossa trajetória. Agir de forma correta, seja no meio profissional ou familiar, requer um exercício diário de hábitos virtuosos, com vistas a alcançar a excelência em quem somos e na forma que agimos para com os demais. Nesse caminho, podemos nos deparar com escolhas extremamente desafiadoras do ponto de vista moral, tais quais os dilemas morais.
O tratamento de dilemas ético/morais pelos estudos em Administração tem ganhado evidência, especialmente com a crescente complexidade das questões administrativas, sociais e globais que têm afetado o contexto brasileiro. Em se tratando de algo relacionado à conduta ética das pessoas, torna-se relevante esclarecer quais seriam os fundamentos ético-normativos acolhedores dos estudos sobre dilemas morais, sabendo-se da predominância da ética normativa deontológica e utilitarista no campo da Administração, com o crescimento da ética das virtudes acontecendo somente nos últimos 30 anos. Essa predominância coexistiu no campo da filosofia moral, até as discussões iniciadas por Elizabeth Anscombe (1958) argumentarem sobre as limitações deontológicas e utilitaristas.
Entre filósofos contemporâneos que reinterpretam a ética das virtudes de raízes aristotélicas, encontramos Rosalind Hursthouse, a qual discute a ética normativa subjacente aos dilemas morais. Assim, procuro apresentar neste artigo alguns dos argumentos elencados por Hursthouse, em seu livro On Virtues Ethics, publicado em 1999, para tecer uma resposta preliminar à seguinte pergunta: como abordar dilemas morais a partir da tradição da ética das virtudes? Para fazer isso, recorro às ideias de Hursthouse (1999) sobre dilemas morais, bem como em seu entendimento sobre o papel da ética normativa das virtudes, frente as perspectivas deontológicas e utilitaristas.
Primeiramente, cabe destacar que Hursthouse (1999) não sugere uma necessária diferenciação entre as éticas normativas deontológicas, utilitaristas e das virtudes, mas comenta que há elementos não abordados nas duas primeiras, como motivação, emoções e caráter, e que são considerados pela ética das virtudes. Para a autora, uma ética normativa não trata somente do procedimento decisório e deveria ser capaz de acessar nossa experiência moral por completo. Sua abordagem é conhecida como sendo baseada na qualificação do agente, ou seja, “uma ação é considerada correta e virtuosa se e somente se é o que um agente virtuoso caracteristicamente faria em uma circunstância comparável” (Sison & Hühn, 2018, p. 167).
Assim, uma distinção notável na consideração de dilemas morais é que Hursthouse (1999) destaca a importância da pergunta que se faz, para analisar um dilema moral. “Dilemas morais são geralmente definidos em termos deontológicos, como criados por princípios ou regras conflitantes, as quais geram requerimentos conflitantes em uma dada situação” (Hursthouse, 1999, p. 43).
Diante de um dilema moral resolúvel (aquele em que é possível definir qual seria a escolha entre x e y), as abordagens centradas na ação, tal qual a deontologia e o utilitarismo, costumam fazer a seguinte pergunta: “qual é o ato correto nesse caso, x ou y?”. Hursthouse (1999) atenta para alguns problemas dessas abordagens. Primeiro, que geralmente, ao menos em seu campo, não se menciona o resíduo ou resquício moral vivenciado pelos agentes: remorso, arrependimento e culpa por ter optado por uma ou outra opção. Segundo, alega que a escolha forçada entre dois cursos de ação ou entre duas pessoas é sinal de falácia ou falso dilema. Isto porque, segundo a autora, os agentes, no momento que deliberam, ponderam sobre vários fatores em jogo, podendo chegar a uma opção diferente, como nenhum, nem outro.
A ética das virtudes, por sua vez, é centrada no agente e nos aspectos constituintes da natureza humana, e por isso Hursthouse (1999) sugere se fazer a seguinte pergunta:
- “O que um agente virtuoso, caracteristicamente, faria nessas circunstâncias?” Essa pergunta abre a possibilidade de alguém considerar mais do que dois caminhos de ação, e se consideramos outros pressupostos da ética das virtudes, pode-se esperar que o agente considere quem ele vai se tornar ao tomar determinada decisão, como isso se encaixa em sua trajetória de vida tomada como um todo, como essa decisão e posterior ação será realizada e impactará demais pessoas, além de ponderar outras questões contextuais envolvidas.
Considerando as perspectivas da ética normativa, Hursthouse (1999) descreve que geralmente a literatura de base deontológica e utilitarista busca oferecer um procedimento de decisão que serviria como um guia para a ação, o que não é algo almejado pela abordagem da ética das virtudes. Esta prefere reconhecer a necessidade da sabedoria moral ou phronesis, especialmente para a resolução de questões difíceis.
Hursthouse (1999) reconhece as críticas recebidas pela abordagem da ética das virtudes, uma delas alegadas pelos utilitaristas, segundo os quais a ética das virtudes é inadequada para prover um guia para a ação. A resposta de Hursthouse (1999) envolve considerar as virtudes (e vícios) como guias de ação – v-rules – tais como, “faça o que é honesto”; “não faça o que é desonesto”, juntamente com o julgamento realizado pela virtude da phronesis.
Hursthouse (1999) destaca outra diferença entre as éticas normativas. Na filosofia moral moderna tem se adotado o pressuposto da unicidade da ação correta – right reason -, dando a entender que apenas um curso de ação é o mais acertado em determinada circunstância. Segundo a perspectiva de Hursthouse (1999), o foco da ética das virtudes está em se agimos bem – good action ou eupraxia – o modo como agimos em data circunstância, ou seja, corajosamente, responsavelmente, honestamente, sabiamente. Além disso, não necessariamente duas pessoas distintas vão fazer a mesma escolha diante de um mesmo dilema moral, a depender da experiência de vida, crenças e valores de cada um. Às vezes alguém pode estar vivenciando um dilema moral irresolúvel, ou ainda trágico, para o qual nenhuma das decisões é cabível. O foco na ação boa ou eupraxia é uma ideia alinhada com o entendimento de Hursthouse (1999) de agente virtuoso: aquele que age caracteristicamente de forma virtuosa, com base em traços do seu caráter, dirigindo-se para o alcance da eudaimonia, ou florescimento humano.
Em resumo, Hursthouse (1999) reúne considerações que nos permitem vislumbrar um modo de abordar dilemas morais à luz da ética das virtudes, academicamente e na prática. Conforme seu pensamento, o cultivo das virtudes e o distanciamento dos vícios podem oferecer princípios ou guias para ação, especialmente quando um agente virtuoso enfrenta situações difíceis ou dilemas e precisa chegar a uma boa ação.
Referências
Anscombe, G. E. M. (1958). Modern moral philosophy. Philosophy, 33(124), 1–16. https://doi.org/10.1017/S0031819100037943
Hursthouse, R. (1999). On Virtue Ethics. New York: Oxford University Press Inc.
Sison, A. J. G., & Hühn, N. (2018). Practical Wisdom in corporate governance. In A. J. G. Sison, I. Ferrero, & G. Guitián (Eds.), Business ethics: A virtue ethics and common good approach (pp. 165–186). New York, NY: Routledge.