Exceções à regra em benefício próprio: um problema de julgamento moral

A casa em que morava alguns anos atrás ficava em uma avenida relativamente movimentada. No outro lado da rua havia uma grande padaria e muitos de seus clientes estacionavam seus carros em frente à minha casa. O problema é que, em muitas vezes, deixavam o veículo bloqueando a saída da garagem. É proibido estacionar em frente à saída de garagem, mas mesmo assim:

– Ah, é só um minutinho…vou ali e já volto!

Ou ainda:

– Foi só um minutinho! Já estou saindo.

Sempre havia uma desculpa para deixar o carro em qualquer lugar. Sempre havia uma justificativa para estacionar em local proibido. Quando eu reclamava, os motoristas diziam que era eu quem estava sendo impaciente e desrespeitosa.

Depois de algumas tentativas frustradas de lembrar aos motoristas de que estavam prejudicando o ir e vir alheio, estratégias mais “persuasivas” começam a povoar o imaginário, como deixar bilhetinhos no retrovisor, dar a ré em cima do veículo que bloqueia a saída ou, sordidamente, surpreender o condutor com fezes caninas na maçaneta do veículo (imaginação com uma dose de indignação podem ser muito criativas juntas). Mas estes foram planos mirabolantes que não passaram de divertidíssimos devaneios corretivos.

O fato é que comum nos deparamos com justificativas para exceções às regras, especialmente se as ações levam à um benefício próprio, sem se pensar nas consequências para os demais. Isso significa que na situação anterior haveria dois problemas relacionados à responsabilidade: uma incorreta aplicação das regras para as próprias ações (a regra só vale para os outros) e uma consideração parcial das consequências dos atos praticados.

Essa miopia nas consequências da ação pôde ser vista de forma abrangente em 2018, durante a greve dos caminhoneiros que paralisou o país. Cidadãos, independentemente de classe ou distinção, correram para os supermercados para se estocar de arroz e outros itens, com medo do término de produtos básicos. Ao serem entrevistados, alegavam que só queriam garantir que não lhes faltasse, justificando dessa forma compras exorbitantes como 25 sacos de arroz. Ficou evidente o ditado popular de que quando a “farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Como um excesso de instinto de sobrevivência, na hora de eventos inesperados o brasileiro revela como age baseado no que lhe é mais conveniente, em detrimento das condições do restante da comunidade, revelando como o seu lado animal/instintivo é intenso.

O que os brasileiros fariam durante um voo comercial se o avião, por alguma emergência, precisasse ser evacuado às pressas. A orientação das companhias aéreas é: “em caso de emergência, deixe seus pertences e dirija-se à saída mais próxima”. Imaginem os brasileiros. Estes iriam pensar, na mesma lógica da exceção para estacionar em local proibido, ou para garantir o que é seu primeiro: só eu vou levar a bolsa, não vai atrapalhar ninguém; só o notebook não vai atrapalhar e ninguém vai reclamar. E com isso, haveria grandes chances de muitos insistirem em levar seus pertences, mesmo com a orientação para deixar, gerando um caos na evacuação ou até mesmo um risco para a sobrevivência dos passageiros.

Reuni essas inquietações para ilustrar ações em que o respeito às regras é flexibilizado para um benefício particular ou ainda em que se levam em conta as consequências para si, em detrimento dos demais. Este argumento não adere exatamente à ética utilitarista, segundo a qual recorremos à análise das consequências das ações (utilitarismo de atos) ou das regras (utilitarismo de regras), de forma a produzir o maior bem para o maior número de pessoas. (ver, por exemplo, Mulgan, 2012).

Ao cometer esse tipo de julgamento moral, parece que alguém está voluntariamente se esquecendo não apenas de aplicar as regras de forma justa, mas também de considerar o contexto de sua ação.  Parece estar relacionado à uma certa astúcia na apreensão da realidade não alinhada com fins moralmente virtuosos, tais como as virtudes da fortaleza e da justiça (Sison & Ferrero, 2015). Parece ser um desvio no uso da virtude da prudência.

Essa exceção autoimposta sugere o envolvimento de dois elementos no julgamento moral. O primeiro representa um processo voluntário de flexibilizar regras em determinadas situações para proveito próprio, como se a pessoa voluntariamente esquecesse aquilo que já sabe; um processo de racionalização, um autoengano com o intuito de um benefício individual. O segundo elemento, que geralmente acompanha o primeiro, envolve se colocar uma limitação momentânea na prudência ou sabedoria prática (Aristóteles, 2009), ao se considerar as consequências das ações, para algo que a pessoa já sabe pela sua experiência e conhecimento que deveria considerar. Nos casos narrados significa esquecer dos direitos do morador que precisa ter acesso livre para sair de sua casa de carro, de pensar nos demais consumidores que precisam ter acesso à alimentos em situações de calamidade, ou nas implicações para a segurança na evacuação de uma aeronave em situação de emergência. A ideia remete a um processo de infantilização ou retrocesso no nível de desenvolvimento moral, se considerarmos a perspectiva da psicologia de Lawrence Kohlberg (Biaggio, 2002).

E aí podemos nos perguntar, quais as implicações para a vida convivial e política de decisões tomadas a partir desses pequenos desvios? As consequências são muitas e geralmente se disseminam na sociedade e, infelizmente, muitas podem ser observadas no nosso cotidiano, como a falta de confiança em nossas instituições e nas pessoas, atitudes oportunistas ou a velha malandragem de tirar vantagem. Algumas dessas expressões atuais têm raízes profundas na cultura brasileira e naquilo que se foi perpetuando como um certo modo de ser do brasileiro.

A moral da exceção e a oportunidade de levar vantagem são exemplificadas, por exemplo, no desconto recebido quando não se exige nota fiscal e nas ligações clandestinas de água, luz ou tv a cabo, o famoso “gato”. Essa lógica está tão enraizada nas práticas brasileiras que, se você não as praticá-las, é chamado de ingênuo ou inocente, as pessoas esperam que você as pratique e isso ajuda a levantar a sua moral com os demais. Se você ao contrário, se opuser à essas práticas, é taxado de “Caxias” ou “certinho demais”.

Passando das relações pessoais e considerando a moral da exceção na esfera pública, essa lógica pode estar associada à falta de responsabilidade pelo que é de interesse público e privilegiando interesses particulares ou de grupos de interesse. A moral da exceção permite o favorecimento de amigos, vantagens no acesso à serviços públicos, como “passar na frente” nas filas de atendimento à saúde ou para se conseguir uma vaga em creche. E isso ocorre muito próximo de nós. Os dois elementos relacionados à moral da exceção podem estar presentes nas ações na área pública, quais sejam, a flexibilização ou formas assimétricas de aplicação das regras (as regras deveriam valer para todos e da mesma forma, certo?) e a miopia na consideração das consequências, considerando no que se refere à questão moral das ações.

Com isso não se quer afirmar que os brasileiros somente praticam ações baseadas em uma moral da exceção. Não é isso. O que procuro discutir é que há situações e momentos em que as ações parecem sugerir um julgamento moral egoísta e racionalizado em prol de benefícios particulares e momentâneos e que, em outras situações, esses mesmos atores podem vir a requerer que essas mesmas regras e consequências sejam consideradas quando outras pessoas estão atuando. E isso remete a uma questão de justiça baseada na reversibilidade, encontrada na teoria filosófica desde Aristóteles (2009). Alerta-se, dessa forma, pela necessidade de repensarmos nossa responsabilidade no momento em que tomamos decisões para agir, de forma a considerar o contexto e as circunstâncias, os atores envolvidos e as consequências de forma mais abrangente, tendo em vista o propósito de nossas ações e da nossa vida como um todo.

Referências:

ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco. (Trad.: Antônio de Castro Caeiro). São Paulo: Atlas, 2009.

BIAGGIO, A. M. Lawrence Kohlberg: Ética e educação moral. São Paulo: Moderna, 2002.

MULGAN, T. Utilitarismo. Petrópolis: Vozes, 2012.

SISON, A. J. G.; FERRERO, I. How different is neo-Aristotelian virtue from positive organizational virtuousness? Business Ethics: A European Review, 24(S2), 2015, pp. S78-S98.

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