Duas rainhas e o anacronismo moral

Em 8 de fevereiro de 1587, a rainha da Escócia, Mary Stuart, é executada na Inglaterra após 19 anos em cárcere neste país, governado pela prima Elizabeth I. Apesar de ter assinado o mandado de morte, Elizabeth afirmou que a ordem foi executada sem seu conhecimento. Quem era dissimulada e quem falava a verdade?

Eis um breve resumo. Mary Stuart, filha de James V da Escócia e Mary de Guise, era herdeira do trono britânico pelo lado da sua avó paterna, Margaret Tudor (irmã de Henry VIII) e foi coroada ao trono escocês ainda bebê. Cresceu na França para ser a rainha consorte de Francis II, mas a morte prematura deste rei a fez retornar para a tumultuada Escócia. Mary era católica e voltou ao seu país durante a ascensão do protestantismo, mas conseguiu administrar a questão, sendo, inclusive, vista pelos católicos como a real herdeira da Inglaterra. Neste ponto, existiu um dos motivos para a rivalidade destas rainhas, pois Elizabeth I era filha de Anne Boleyn e Henry VIII e não foi reconhecida pela igreja católica como filha legítima e herdeira do trono inglês. Além disto, diversos registros retratam a conturbada relação entre as primas, que oscilava da cordialidade amigável a competição, até em questões banais como quem era mais alta ou mais bonita.

O declínio de Mary Stuart veio após seu segundo casamento, com Henry Stuart (Lorde Darnley). A sua morte mal explicada é atribuída a Jaime Hepburn, 4º Conde de Bothwell, com quem Mary casa-se pouco tempo depois, levantando suspeitas sobre a sua participação. Entre questões políticas, religiosas e pessoais, em superficial apanhado, o conde é morto, o meio-irmão protestante de Mary assume como regente em nome de James VI, seu filho com Lorde Darnely, e a rainha busca asilo na Inglaterra com a prima. Elizabeth sabia o quanto era perigoso executar uma rainha (o mesmo drástico fim de sua mãe), então manteve Mary em cárcere até que conspirações contra o trono inglês surgem como oportunidade para condenar a rainha escocesa, já a muito presa por crimes não solucionados. 

Até hoje não se sabe o quanto Mary participou de todas as especulações em que seu nome foi envolvido, mas a história acabou por fazê-la um mártir, que passou seus últimos anos fiel a sua verdade, rezando e morta por sua religião. O conflito entre as duas rainhas foi tema de filmes e livros, incluindo o famoso Alexandre Dumas, que mostrou como a escocesa foi um exemplo de retidão moral.

 Então, afinal, qual delas foi dissimulada? A arte retrata uma “Mary, sempre mais mulher do que rainha, enquanto, pelo contrário, Elizabeth sempre foi mais rainha do que mulher” (Tapioca Neto, 2020, p. 7). Porém, se o imaginário artístico, e talvez a própria história, induz a uma imagem da escocesa pura e enganada e de uma inglesa estrategista e movida pela manutenção de seu poder, toda e qualquer tentativa de julgamento, na minha opinião, entra no anacronismo. A própria Mary traiu e teve comportamentos não aceitáveis hoje, mas que eram comuns a monarcas absolutos da época. Só que isso não é motivo para diminuir sua força e coragem, retratada na retidão moral dos anos de cárcere. Por outro lado, Elizabeth também foi um exemplo de força e coragem, ao provar que “seu sexo não era incompatível com política”, como se acreditava na época (Tapioca Neto, 2020, p. 10). 

 É por isso que, quando analisamos fatos como estes, não deveríamos tentar descobrir quem estava certo ou errado. Este tipo de análise, inevitavelmente nos leva a um anacronismo moral, pois tenta julgar com nossas lentes algo que aconteceu em outra época e em outro contexto. A pergunta, portanto, deveria ser qual era a verdade de cada uma e que lição tiramos de cada fato, ou seja, o que ficou apesar dos tempos.

No caso destas duas rainhas, se nos tornamos corajosos pelos atos corajosos (Aristóteles, 1999) é inegável a braveza de Mary Stuart, e isto seria uma prova para a retidão moral atribuída a sua figura, que agiu sempre de acordo com seus princípios e foi firme na sua verdade. Elizabeth, por outro lado, também não foi privada de virtudes pois, apesar das especulações, ela demonstrou grande temperança ao evitar “a todo o momento criar uma inimizade ou conflito com a prima e rainha católica” (Silveira e Barbosa, 2013, p. 207), apesar de todas as dificuldades políticas que enfrentou.  Assim, o aprendizado que fica não é a conclusão entre vilões e heróis, mas que, através dos tempos, algumas virtudes sempre estarão ligadas à força e à coragem buscadas entre aqueles que buscam para si um comportamento moral e íntegro e agem conforme o  seu caráter para, talvez, ficar na história como um exemplo de retidão moral. 

REFERÊNCIAS

Aristoteles. (1999). Nicomachean ethics. T. Irwin (Trans.) (2nd ed.). Indianapolis, IN: Hackett Publishing Co

Mary, Queen of Scots. (2021). In Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/Mary,_Queen_of_Scots

Silveira, José R. F.; Barbosa, Juliana G. (2013). A guerra dos tronos: Elisabeth e Mary Stuart. Sem Aspas, Araraquara, v.2, n.1,2, p.197-208.

Tapioca Neto, Renato D. (2020). Prefácio. In: Dumas, Alexandre. Mary Stuart, a rainha da Escócia/ tradução de Cláudia Melo Belhassof. – São Caetano do Sul, SP: Wish. Tradução de: Mary Stuart, Celebrated Crimes (ed. 1910) 1. Edição do Kindle.

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