À primeira vista, o utilitarismo e a ética das virtudes são correntes de pensamento absolutamente incompatíveis: o utilitarismo apela para um princípio de maximização, a um cálculo instrumental das consequências como critério para a classificação de uma ação como moral ou não, enquanto que a ética das virtudes exige análises cuidadosas da situação e do contexto em que o agente se encontra para determinar até que ponto um determinado traço de caráter deverá guiar a ação. Dessa maneira, um agente utilitarista provavelmente escolheria a mesma ação se a situação se repetisse, mas um agente virtuoso poderia agir de maneiras diferentes em cada uma.
Por outro lado, existem algumas semelhanças entre as duas correntes de pensamento moral: em primeiro lugar, ambas apelam à razão, e não às emoções ou sentimentos, para definir o que é moral; neste sentido, ambas estão distantes do apelo aos sentimentos morais que os iluministas escoceses, como Hume e Adam Smith, definiram como bases da moral. Em segundo lugar, ambas colocam a felicidade como a meta buscada pela ação humana, ainda que o que entendem como tal seja distinta: se para os utilitaristas seria a maximização da diferença entre o prazer e a dor, para os eticistas da virtude, a felicidade reside numa vida conforme a razão. Por fim, é preciso mencionar o aspecto mais óbvio: em flagrante contraste com a deontologia, ambas consideram as consequências do ato como critério para a ação moral, ainda que no caso da ética das virtudes isso não fique tão nítido quanto no utilitarismo.
Diante disso, existe, de fato, alguma forma de compatibilizar as éticas da virtude e utilitarista? Neste pequeno ensaio, alguns argumentos serão examinados não com o intuito de resolver o enigma, mas de fornecer elementos para maiores reflexões. O primeiro desses argumentos é apresentado por Foot (1985), que considera as duas éticas incompatíveis; o segundo aponta para uma forma especial de utilitarismo (KILCULLEN, 1983), em que determinadas virtudes são promovidas pela sua compatibilidade com o princípio utilitarista; o terceiro defende que a ética das virtudes deve incorporar o raciocínio sobre as consequências (RUSSELL, 2014); por fim, o ponto de vista mais radical propõe a compatibilização das duas correntes (CRISP, 1992).
Philippa Foot, uma das mais conhecidas defensoras contemporâneas da ética das virtudes, critica a possibilidade de conciliação entre as duas correntes morais aqui tratadas. A autora inicia sua abordagem afirmando ser notável o quanto o utilitarismo assombra mesmo aqueles que não acreditam nele, como se as pessoas sentissem que está correto mesmo quando insistem que está errado. Para ela, o erro fundamental do utilitarismo consiste em seu consequencialismo (embora isso seja exatamente o que o torna tão atraente); dito de outra forma, o erro consiste em somar o bem-estar produzido pela ação em outras pessoas, um problema que, apesar de todas as tentativas de corrigi-lo, permanece em cada reformulação do utilitarismo. De acordo com Foot (1985), o problema básico consiste em uma pessoa, ao decidir agir, considerar qual seria o melhor estado de coisas (state of affairs) a ser produzido pela sua ação, quando é impossível fazê-lo sob um ponto de vista impessoal – e é isso que deve ser exigido.
Diante desse quadro, Foot afirma que seria preciso considerar as virtudes para a definição da ação; em especial, a justiça e a benevolência aparecem como guias de ação mais adequados para gerar o “melhor estado de coisas” do que as consequências. Em especial, se considerarmos a benevolência como o bem dos outros, as ações morais por ela motivadas produziriam boas consequências sem a necessidade de considerar o utilitarismo. As virtudes, para a autora, são relacionadas às finalidades da ação humana mais do que à observação de regras. Além disso, as virtudes legitimam a ação moral por meio de um critério interno à própria ação, ao passo que as consequências são externas (porque produzidas) a ela. Pode-se concluir que, para Foot (1985), a ética das virtudes não apenas não precisa de qualquer consideração utilitária, como ainda é capaz de fornecer um guia superior para a ação moral.
John Kilcullen (1983) afirma que, para John Stuart Mill (1806 – 1873), a virtude pode ser considerada como um fim em si mesmo, acima da própria felicidade, porque é capaz de garantir certos modos de conduta ou de sentimento que beneficiam mais o agente moral nos casos em que a virtude e a felicidade conflitem. Neste caso, afirma Kilcullen, é preciso um compromisso do agente para com a virtude em si, não por causa dos efeitos que ela possa produzir; o agente moral deveria desinteressadamente buscar a virtude como uma “garantia” de sua ação: ao ser virtuoso, esse agente simplesmente desconsidera quaisquer vantagens que possam advir da ação errada. Dessa forma, o argumento de Kilcullen apela para um certo tipo de utilitarismo de regras, em que a maximização do bem-estar ou da felicidade é produzida pela adesão a um comportamento virtuoso; não se trata, como o autor destaca, de um consequencialismo puro, e sim de reconhecer que as ações são boas pelos seus efeitos tanto quanto por desenvolverem e preservarem disposições úteis (useful dispositions). Um agente “virtuoso-utilitarista” (um termo que Kilcullen não usa, a propósito) seria uma pessoa confiável, agindo de uma certa forma mesmo quando parece haver vantagens em agir de outra.
Neste momento, pode-se analisar as posições que defendem o diálogo entre as duas correntes de pensamento. Em primeiro lugar, apresenta-se a compatibilização sugerida por Daniel C. Russell, que organizou o Cambridge Companion to Virtue Ethics, publicado em 2013, e contribuiu para o volume da mesma coleção dedicado ao utilitarismo. Neste ensaio, ele afirma que as duas tradições filosóficas são muito diferentes, mas, embora defenda a ética das virtudes, há muito que esta pode aprender com o utilitarismo. Em primeiro lugar, Russell (2014) afirma que o pensamento sobre as consequências da ação não deve ser confundido com o consequencialismo, e defende que a ética das virtudes adote o pensamento sobre consequências, pois uma parte importante da ação virtuosa refere-se a buscar certos resultados em vez de outros (por exemplo, na generosidade, o que importa é fazer coisas que realmente ajudem outras pessoas). Assim, pensar virtuosamente sobre as consequências é importante, e envolve determinar quais consequências da ação realmente importam, moralmente falando.
Russell (2014) também advoga o uso da inteligência prática nas consequências: a generosidade, como uma virtude, é uma meta, mas é preciso saber como ela opera, o que exige pensar nas consequências. Ele recorda que a busca por um objetivo virtuoso deve ser refletida tendo-se em mente que, ao fazê-lo, outros objetivos não poderão ser perseguidos; numa situação de recursos limitados, definir entre dois objetivos virtuosos (como doar dinheiro para a compra de equipamentos médicos ou para livros para a biblioteca) exige a inteligência prática, bem como o entendimento de quais são os resultados de cada ação virtuosa. Russell conclui seu artigo afirmando que, mesmo não sendo utilitarista, ele acredita que não existe virtude sem inteligência prática, e esta envolve o pensamento cuidadoso sobre as consequências; para o autor, os custos e os benefícios nem sempre são os critérios adequados para decidir como agir, mas os resultados da ação muitas vezes são o que importa, e por isso a ética das virtudes tem muito a aprender com o utilitarismo.
Um ponto de vista mais radical, entretanto, é possível. Roger Crisp (1992), outro autor conhecido pelas contribuições à ética das virtudes, afirma que o utilitarismo, ao considerar a moralidade a partir da produção de utilidade, tende a distinguir entre um critério de correção moral e um procedimento decisório, concentrando-se no critério; para ele, essa corrente moral fracassa como procedimento de tomada de decisão. Crisp (1992) afirma que o utilitarismo confere o mesmo peso aos interesses e preferências das pessoas e advoga seu tratamento igualitário, e avalia diferentes posicionamentos a seu respeito, e defende uma visão que chamou de “Utilitarismo Biográfico” (UB), que parte da crítica de Foot (1985) e conduz a um princípio moral que pode ser sintetizado na fórmula “qualquer indivíduo deve viver de modo que a quantidade total de utilidade na história do mundo seja tão próxima quanto possível do máximo”, isto é, para cada pessoa, se ela viver de maneira tal que a utilidade total na história do mundo for menor do que poderia ser, sua vida teria sido pior do que poderia. À luz desse princípio, cada pessoa deveria viver de maneira a escolher as ações que maximizem a utilidade, tendo sempre em mente a motivação de beneficiar os outros imparcialmente, mas isso somente serve para definir se as ações são moralmente corretas, não servindo como procedimento decisório.
Como solução, Crisp (1992) sugere um “utilitarismo das virtudes” (UV), cujo princípio básico postula que o agente deve agir virtuosamente e adotar o UB somente em certas ocasiões. Para o autor, o utilitarismo não se opõe às virtudes, embora algumas teorias sobre as virtudes sejam incompatíveis com ele. O UB pode ser visto como uma teoria objetiva que demonstra como um determinado tipo de vida pode ser certa ou errada, ao passo que o UV se relaciona com os processos decisórios, tornando-se uma teoria subjetiva da maximização da utilidade. Crisp (1992) afirma que o utilitarismo das virtudes é capaz de maximizar a utilidade, assim, o biográfico recomendaria ação conforme ele. A vida das virtudes, afirma o autor, é a verdadeira vida moral, que deve adotar o interesse pelos outros e a sensibilidade em relação a seus desejos e necessidades como fundamentos para o raciocínio.
Diante do exposto, percebe-se que, da oposição radical de Foot ao utilitarismo, com a defesa das virtudes em seu lugar, pode-se chegar a uma compatibilização completa como a de Crisp e seu utilitarismo das virtudes. Dentre essas duas propostas, tem-se a defesa de Kilcullen do uso da virtude no utilitarismo e de Russell e a adoção do pensamento consequencialista na ética das virtudes. A proposta compatibilista de Crisp parece radical demais para os eticistas “puros” da virtude, mas as soluções de Kilcullen e Russell apontam para o uso de “ferramentas” de uma filosofia ética no contexto da outra, o que pode produzir bons resultados em termos da reflexão moral. O objetivo da ética das virtudes e do utilitarismo é o mesmo, ou seja, a vida feliz; como alcançá-la pode ser diferente, mas se “todos os caminhos levam a Roma”, pode-se pensar que em algum momento eles realmente se cruzam.
Referências:
CRISP, Roger. Utilitarianism and the life of virtue. The Philosophical Quarterly, v. 42, n. 167, p. 139 – 160, Apr. 1992.
FOOT, Philippa. Utilitarianism and the virtues. Mind – New Series, Oxford, v. 94, n. 364, p. 196 – 209, Apr. 1985.
KILCULLEN, John. Utilitarianism and virtue. Ethics, Chicago, v. 93, n. 3, p. 451 – 466, Apr. 1983.
RUSSELL, Daniel C. What virtue ethics can learn from utilitarianism. In: EGGLESTON, Ben; MILLER, Dale E. (eds.). The Cambridge companion to utilitarianism. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 2014. P. 258 – 279.