Mais uma vez, a virtude

Nesse pequeno texto busca-se trazer ao conhecimento um aspecto definido pelo filósofo escocês Alasdair MacIntyre em sua ética: como agentes morais, nós, seres humanos, somos animais racionais e dependentes. No livro Dependent Rational Animals, publicado em 1999, MacIntyre procura sustentar seu ponto de vista de que as virtudes são essenciais para a vida humana, e para isso propõe que os seres humanos são criaturas vulneráveis e dependentes, que devem sua existência, sobrevivência e desenvolvimento (flourishing) aos outros. Para provar essa proposição, MacIntyre traça paralelos entre os seres humanos e os animais de grande inteligência, como os golfinhos e os chimpanzés, defende que seja reconhecido como moralmente importante a vulnerabilidade humana e a dependência que cada um tem dos outros, e a necessidade de uma concepção das relações sociais e do bem comum que sustente virtudes de independência racional (virtues of rational independence) e de reconhecida dependência (virtues of acknowledged dependence).

De particular interesse, aqui, é a ideia de que o desenvolvimento (flourishing) demanda as outras pessoas. Essa noção é associada pelo autor ao bem (good), que é descrito no livro em três níveis: primeiro, existem coisas que podem ser vistas como meios para um fim (habilidades, oportunidades, capacidades que permitem que alguém alcance um bem); em segundo lugar, o bem como um fim em si, definido como algo interno a certas práticas que alguém pode engajar-se socialmente. Por fim, o bem atribuído aos julgamentos de como um indivíduo ou comunidade podem ordenar os bens de suas vidas – o bem que se associa ao florescimento humano em si. Esses julgamentos devem ser articulados racionalmente, e por serem práticos, permitem que a pessoa se torne um “racional prático” (practical reasoner).

Essa pessoa, esse practical reasoner, é alguém que já superou a dependência associada à criança em uma relação familiar ou de guarda (child-parent/child-guardian relationships), e é capaz de avaliar e modificar seus juízos diante da razão, o que lhe permite escolher razoavelmente entre alternativas. A pessoa deve ter a capacidade de compreender o que é o bem, o que é preciso para atingi-lo, mas também precisa de um senso de independência, algo que na infância é praticamente impossível. Além disso, a pessoa deve ser capaz de deixar de lado seus desejos imediatos e buscar fins de longo prazo.

Dito isso, a capacidade de buscar o bem pareceria estar subscrita apenas ao indivíduo, o que conflitaria com o pensamento de um filósofo tão interessado na comunidade e nas suas tradições como MacIntyre. Mas esse conflito não existe; MacIntyre deixa claro que o racional prático independente (independente practical reasoner) é alguém que reconhece sua dependência dos demais. E isso, para MacIntyre, demanda as virtudes morais e intelectuais. À medida em que a criança cresce, mais e mais relacionamentos sociais são estabelecidos, e esses relacionamentos são essenciais para que o raciocínio prático seja possível, e esses relacionamentos demandam a virtude.

Dentro de uma comunidade, cada pessoa se engaja em relacionamentos em que tanto dão algo a outras pessoas quanto recebem delas em particular ou de outras. Esse dar (giving) é não-calculado: o agente virtuoso não está preocupado em reciprocidade ou em assimetria, o que ele dá aos outros é algo que sua razão lhe indicou que deveria ser dado. Em outras palavras, não é uma troca de mercado que envolve um valor equivalente. O bem individual exige um raciocínio prático, o bem comum, um raciocínio político: de “quais bens desempenham alguma coisa em minha vida” se passa para a ideia de “que papel esses bens podem desempenhar na vida da comunidade”.

Muito mais poderia ser dito aqui, mas os limites de espaço impedem maior tratamento da complexa formulação de MacIntyre em Dependent Rational Animals. Como conclusão, gostaria de destacar o fato de que o indivíduo é quem exerce a virtude, mas tal exercício só é possível em relacionamento com outros indivíduos. O bem individual exige considerar também o bem que pode ser produzido com a ação para uma comunidade, e somente aqueles que conseguem raciocinar de maneira independente, isto é, conforme uma reflexão sobre o bem individual consciente da dependência que cada um tem dos demais seres humanos, podem ao mesmo tempo atingir esse bem para si e o bem para sua comunidade.

MacIntyre nunca escondeu seu desprezo para com o liberalismo político clássico, a quem acusa de corroer os valores da comunidade e substituí-los pelos dos indivíduos. Mas, em Dependent Rational Animals a comunidade humana é vista como um ajuntamento de seres humanos independentes, ainda que reconheçam sua dependência uns dos outros. Isso não o torna um liberal, mas ao menos reduz seu viés contra o individualismo.

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