Este artigo é resultado de uma reflexão sobre a relação dualista que se estabeleceu em relação ao papel de Deus na ciência e na tecnologia. A filosofia ocidental, particularmente desde a Idade Média, tem sido orientada pelo conceito de autonomia humana. Ela se esforçou ao máximo para validar e consolidar essa autonomia (Schuurman, 2016).
Frequentemente, discutimos sobre uma cultura científico-tecnológica, ou simplesmente a cultura tecnológica na qual estamos inseridos. Nesse cenário, o futuro é focado principalmente no poder e no progresso técnico-econômico. É nisso que nossa cultura depositou sua esperança. O espaço do transcendente, do poder divino, permanece voluntariamente intocado e, nessa dinâmica, confia-se que o poder humano resolverá todos os problemas e pavimentará o caminho para o futuro. As pessoas determinarão a origem e o propósito de todas as coisas. Assim, se o céu é um lugar vazio, os seres humanos depositarão sua esperança na ciência e na tecnologia. A expectativa é que ambos assegurem um futuro promissor.
Atualmente ocorre uma inversão no papel da ciência e da tecnologia. Prioriza-se mais a utilidade da ciência do que a sua veracidade (Schuurman, 2016). No âmbito tecnológico, levando em conta as abordagens atuais, observa-se a violação de nossa tradição filosófica com o desvanecimento de um dos pilares da civilização ocidental que manteve a unidade de nosso percurso civilizatório até o momento: a noção da natureza humana (Vaz, 2000).
A fim de citar um exemplo atual, uma das empreitadas mais ambiciosas da área da Inteligência Artificial – o desenvolvimento de agentes morais dotados de consciência artificial – torna evidente como o achatamento da compreensão humana e exclusão do papel do divino nas áreas do saber limitam a compreensão de quem é a pessoa, como se compõe a sua natureza e a unicidade de sua capacidade de abstrair e produzir conhecimento. Não há nada que o homem possa fazer para reproduzir algo que é em essência, intangível e inexplicável (Polo, 2019). A capacidade de ser humano, de ser consciente.
Buscar reproduzir a consciência humana não merece atenção de uma ética comprometida com rigores conceituais, uma vez que se compreende que não há qualquer dúvida sobre a impossibilidade de se reproduzir a consciência, haja vista a transcendência da natureza humana. Porém, mediante toda a especulação que circunda a temática tecnológica, pode-se dizer, com certa segurança, que a natureza humana está sendo banalizada (e até mesmo atacada).
Lima Vaz (2000) uma vez observou que, de um lado, temos o crescimento vertiginoso das tecnociências e, de outro, a dissolução do tecido social tradicional, que vem sendo substituído por formas inovadoras e inéditas de convivência humana e organização social. Finalmente, o filósofo questiona qual será o propósito da vida neste modelo de sociedade onde as relações são mediadas por artefatos tecnológicos. Quais valores a orientarão e quais objetivos o ser humano poderá vislumbrar para seu percurso histórico quando a vida quase se reduz a aspectos materiais?
Podemos concluir que estamos enfrentando um desafio: a desumanização da pessoa por meio da tecnologia – que é o resultado de um sintoma anterior – a perda da reflexão ontológica e a minimização da importância de Deus no âmbito do pensamento e da ação humana (Schuurman, 2020), fatores que influenciam as bases do desenvolvimento científico. Lima Vaz (2000) afirmou que nossa trajetória nos levou a uma sociedade rica em meios e podre em fins, arrebatando-nos rumo a um relativismo universal e hedonismo sem limites. Neste ponto, acredito que o regate do reconhecimento da importância do papel divino na constituição da realidade e desenvolvimento da ciência sejam relevantes para começar a superar percepção dominante limitada sobre o que é o ser humano.
Referências
LIMA VAZ, H. C. “Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1”. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Polo, L. Presente y futuro del hombre. Ediciones Rialp. Madrid, 2019.
Schuurman, E. Fé, Esperança e Tecnologia: Ciência e fé cristã em uma cultura tecnológica. Ultimato. Viçosa, MG.2016