Antes que Leonardo DaVinci surgisse para nos deixar estupefatos com suas habilidades de cientista/artista multitarefa, o posto de “sábio pau pra toda obra” poderia muito bem ter sido atribuído a Aristóteles. O filósofo grego testava constantemente o limiar entre o pensar e o experimentar, propondo a coleta empírica e metódica de dados como um caminho formidável para atender à fome intelectual humana.
Esse proceder veio muito a calhar no estabelecimento de alguns fundamentos para o que, até hoje, se entende por verdadeiro no campo da ética, das virtudes, da lógica e de incontáveis outros campos do saber. Mas, quando o assunto são as ciências naturais, nosso aclamado personagem helênico parece ter incorrido em alguns equívocos, dos quais analisaremos um: o caso da reprodução das abelhas.
Curioso como todo gênio costuma ser, Aristóteles dedicou-se a perscrutar o processo de perpetuação dessa espécie que, contrariando a lógica da maioria dos animais, não possui à primeira vista uma divisão em machos nem fêmeas, mas em outras categorias: trabalhadoras, zangões e rainhas.
Dotado de recursos limitados para investigar os bastidores das colmeias, o pensador chegou a afirmar que a rainha era do sexo masculino, que o mel caía do ar e outras inferências que séculos mais tarde seriam refutadas pela ciência.
Embora munido de argumentos, ele declarou, prudentemente, que os fatos sobre a reprodução das abelhas “ainda não foram suficientemente estabelecidos. Se um dia o forem, o crédito deverá ser dado à observação mais do que às teorias – e às teorias apenas na medida em que tiverem sido confirmadas pelos fatos observados” (Da geração dos animais).
Ao dizer isso, Aristóteles dá mostras de que pode, sim, ser válida a incursão em campos sobre os quais não julgamos saber o suficiente, desde que tenhamos consciência de que essa postura eventualmente pode ser intrometida – ou “abelhuda”, como descreve o dicionário.
Como acontece em qualquer intromissão, as consequências podem ser as mais diversas. A primeira, mais óbvia e indesejável, é a ocorrência de equívocos, como acabamos de mostrar. Mas pode haver outras de cunho positivo, e no caso de Aristóteles podemos mencionar que a sua dedicação às abelhas, ainda que levando a achados imediatos inconclusivos, estimulou que toda uma leva de pensadores voltasse ao tema por várias gerações.
Houve, evidentemente, quem retomasse o assunto pelo viés biológico, mas também se registraram, ao longo dos séculos, reflexões filosóficas sobre as abelhas que possivelmente se valiam do fato de Aristóteles ter dado tanta atenção a elas como ponto de partida.
É o caso de Santo Agostinho, que ponderou: “Se admiramos a abelha que retoma o voo após ter feito seu mel com uma inexplicável sagacidade pela qual prevalece sobre o homem, não devemos por isso a preferir, nem a comparar conosco” e de Santo Ambrósio, para quem é preciso “imitar a abelha, que forma favos sem prejudicar ninguém e sem atentar contra o bem alheio”.
A ciência contemporânea pode descer até o nível das partículas subatômicas para elucidar o ciclo reprodutivo ou os engenhosos mecanismos envolvidos na fabricação do mel, mas continuará a depender da “abelhudice” de pesquisadores para desbravar campos onde nenhum homem ou mulher jamais esteve e voltar de lá trazendo a próxima grande descoberta.
