Virtudes para a proteção da Vida

Que virtudes precisamos para proteger a vida de alguém? No momento em que entendemos que cada pessoa possui um valor em si mesmo, acabamos por rejeitar ações que humilhem, maltratem ou incorram contra a vida de alguém. A própria pessoa, alvo dessas ações, poderá reclamar nessa situação, buscar por seus direitos. Mas e quando esse alguém não tem capacidade por si mesmo para se defender ou depende de outros para proteger a sua vida?

Estamos falando aqui da vida de bebês e gestantes durante a gestação, para os quais, segundo distintas correntes jurídicas e filosóficas, se reconhece o princípio da dignidade da pessoa humana (Ribeiro; Pinheiro, 2017; Sarlet, 2010). Podemos assumir que os pais, a família, a comunidade e o Estado desempenham diferentes papeis para proteção da vida da mãe e do nascituro. Por outro lado, muitos países têm optado por descriminalizar o aborto em alguma medida (Studlar; Buns, 2015), adotando políticas públicas e direcionando recursos públicos para custear tal procedimento. Muitas vezes o Estado assume práticas contraditórias, que se opõem, o que neste caso recai sobre a questão do aborto vs. proteção da vida.

Com isso, a contribuição de cada pessoa se torna ainda mais importante para a construção do bem comum. Pensemos um momento sobre a seguinte questão: como posso agir para proteger a vida de bebês e gestantes? Argumentamos que a resposta substantiva à essa questão demanda honestidade consigo próprio para entender a natureza humana em sua forma integral e multidimensional (Ramos, 1989), o que por sua vez não é o mesmo que um conhecimento acadêmico ou científico da questão, mas sim, a capacidade de reconhecer a pessoalidade do bebê em formação, que já é alguém mesmo antes de nascer (Spaemann, 2015). Nesse sentido, estamos falando de um conhecimento noético – nous – capaz de apreender um princípio de ação, o qual vem seguido de uma sabedoria prática – phronesis – capaz de realizar tal princípio de acordo com a realidade da vida de cada um (Berti, 2002). Tal princípio é algo que temos a condição de apreender por meio do afeto ou laço emocional com o bebê no ventre materno ou ao assumirmos a responsabilidade pela vida em formação de um novo membro da comunidade. Com isso, queremos trazer para reflexão a capacidade do cidadão comum em reconhecer naturalmente o princípio da dignidade e a vida como um bem humano básico (Finnis, 2011) por meio da racionalidade noética e da sabedoria prática (Aristóteles, 2009; Berti, 2002), sem ter a necessidade de um conhecimento jurídico ou filosófico sobre o tema. Para ações de proteção à vida, ainda são necessárias virtudes morais: autodomínio para evitar os excessos, fortaleza para perseverar em momentos de dificuldade e justiça para manter as relações interpessoais.

Essa é a perspectiva que vislumbramos como possibilidades objetivas para as gestantes. Há ainda outras três perspectivas em que podemos discutir virtudes para a proteção da vida: na condição de pai, no papel da família e da comunidade e, finalmente, no papel de atores da esfera púbica, entre eles o Estado. Discutiremos brevemente, nos próximos parágrafos, uma visão preliminar na perspectiva da gestante, seguida de uma discussão do papel da comunidade, procurando imaginar quais virtudes morais são necessárias para defender a vida durante a gestação.

Começamos pela gestante. Ao saber que está grávida, uma gestante pode decidir por dar continuidade a gestação, mesmo que não tenha sido uma gravidez planejada, mesmo que enfrente dificuldades financeiras, de trabalho, ou que não tenha um relacionamento estável com o pai da criança. Ou seja, independente das dificuldades, ela pode optar por ter o bebê. Mas o que a impele a fazer isso? Podemos sugerir previamente que, além de coragem, as gestantes expressam fortaleza diante de adversidades, ao assumir a responsabilidade de ter um filho. Ao longo da gravidez precisam também cuidar da sua saúde e alimentação, para que o bebê também se desenvolva apropriadamente.  

Certa vez ouvimos de uma gestante atendida por organizações da sociedade civil que atuam em comunidades carentes: “é assumir a responsabilidade, é uma vida que está ali”. Vemos nessa frase a expressão simples de uma cidadã, que reconhece seu papel frente à essa vida em formação, ao assumir para si a responsabilidade de protegê-la, mesmo em condições socioeconômicas desfavoráveis de sua família.

Por outro lado, uma dessas condições isoladamente poderia ser alegada pela gestante para não seguir com a gravidez, como justificativa para cometer um aborto. Mas é uma vida que está se formando no útero materno, não é? A gestante reconhece a vida em formação em seu ventre como alguém? E a dignidade do bebê em formação? Além disso, a gestante de fato pode enfrentar uma condição socioeconômica difícil, pode estar dependendo de outras pessoas para ter o filho, pode necessitar uma ajuda significativa do Estado. Ela sabe como buscar ou conseguir o apoio necessário para poder criar seus filhos? Nossa experiência acompanhando organizações da sociedade civil que ajudam gestantes nos permite observar que nem todas as gestantes expressam essa preocupação pela vida em formação. Podemos citar alguns elementos que contribuem para tal comportamento: dificuldades de toda ordem, econômicas, sociais, vulnerabilidade social, violência; envolvimento com drogas, falta de sentido ou propósito de vida; decisões tomadas unicamente considerando o interesse próprio; não reconhecer o feto em sua dignidade. As virtudes, por sua vez, poderiam ser incentivadas para dar conta dessas dificuldades. O Quadro 1 procura relacionar tais dificuldades com respectivas virtudes que poderiam ajudar.

Elementos que dificultam a proteção à vida intrauterinaVirtude que poderia ser desenvolvida
Dificuldades de todos as ordens, econômicas, sociais, vulnerabilidade social, violênciaFortaleza – disposição para resistir e manter uma decisão, permanecer fiel à sua consciência, mesmo diante de forte oposição; é o sacrifício de si mesmo para a realização de objetivos justos e prudentes.
Envolvimento com drogasTemperança ou autodomínio: capacidade de direcionar ou submeter às paixões à razão, evitando as tentações do prazer e do poder.
Falta de sentido ou propósito para a vidaMagnanimidade: refletir sobre o propósito da vida ou telos; ser capaz de vislumbrar um futuro melhor, a partir do reconhecimento de suas condições e valores. (Havard, 2011).
Tomar a decisão pensando somente no interesse próprio;Prudência: conhecimento sobre a realidade para a tomada de decisões prudentes, considerando as circunstâncias e o contexto em que vive, considerando inclusive os impactos para os demais.
Não reconhecer o feto e sua dignidade enquanto pessoa humana em formaçãoHumildade e justiça. A humildade está relacionada a viver na verdade, de si mesmo e reconhecendo a verdade do outro; é um convite para servir. A justiça – dar a cada um o que é seu e assumir a responsabilidade que se tem para com os outros.

Quadro 1 – Dificuldades para a proteção à vida na perspectiva de gestantes em vulnerabilidade

Fonte: elaborado pela autora, com base em descrições das virtudes de A. Havard (2011).

Enquanto sociedade, cabe a nós construir e intensificar ações da sociedade civil que possam contribuir para a proteção da vida de gestantes e bebês. O Estado por si só não consegue atender às gestantes de forma a considerar as circunstâncias e particularidades únicas de cada mulher, de cada família e comunidade. Por isso, organizações locais, de base comunitária, têm um grande potencial em alcançar aquelas famílias e gestantes que ficam desassistidas pelos serviços de saúde, assistência social e outras políticas públicas. Além disso, os voluntários que atuam em tais organizações são engajados com tal problema, querem de fato contribuir para tais pessoas. As comunidades mais carentes geralmente enfrentam problemas de criminalidade e violência, o que demanda coragem dos envolvidos para atender às gestantes, especialmente se as práticas envolvem visitas domiciliares, bem como uma postura de humildade e abertura para acolher e ouvir, entender as circunstâncias de cada gestante.

Discutimos neste artigo algumas virtudes que podem contribuir para a proteção à vida durante o período gestacional, considerando a perspectiva da mulher, enquanto gestante, bem como o papel da comunidade, a exemplo de organizações da sociedade civil. Com isso, tentamos defender a ideia que o reconhecimento da dignidade da pessoa humana começa na gestação, quando se reconhece a pessoalidade do bebê em formação como sendo alguém, um novo membro da comunidade, e que isso é algo que podemos captar naturalmente a partir de nossa própria constituição enquanto pessoa humana. Para proteger a vida em formação, precisamos ainda exercer virtudes, como a prudência, a fortaleza, o autodomínio, justiça, coragem e humildade, de modo a dar conta de enfrentar as dificuldades enfrentadas por gestantes e comunidades.

Referências:

Aristóteles. (2009). Ética a Nicômaco. (Trad. Caeiro, A. C.). São Paulo: Atlas.

Berti, E. (2002). As razões de Aristóteles. (Trad.  Macedo, D. D.). 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola.

Finnis, J. (2011). Natural law e natural rights. 2nd ed. New York: Oxford University Press.

Havard, A. (2011). Virtudes e liderança: a sabedoria das virtudes aplicada ao trabalho. (Trad. Carillo, Élcio). São Paulo: Quadrante.

Ramos, A G. (1989). A nova ciência das organizações: Uma reconceituação da riqueza das nações. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas.

Ribeiro, M. S. & Pinheiro, V. S. (2017). A dignidade da pessoa humana e o direito à vida do nascituro: fundamentos biológicos, filosóficos e jurídicos. Bioética e Direitos Fundamentais, 18(3), 139-176.

Sarlet, Ingo Wolfgang. (2010). Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado.

Spaemann, R. (2015). Pessoas: ensaios sobre a diferença entre algo e alguém. (Trad. Schneider, N.). São Leopoldo (RS): Editora Unisinos.  

Studlar, D. T. & Burns, G. J. (2015). Toward the permissive society? Morality policy agendas and policy directions in Western democracies. Policy Sci, 48, 273-291.

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