O Gambito da Rainha e as políticas de combate às drogas

A palavra “gambetto” consta dos dicionários italianos desde o século XIII, como sinônimo de “aplicar uma rasteira”. Ao migrar para o português, tornou-se “gambito” e teve o significado estendido para “artimanha para vencer o adversário”. Seu uso mais popular ocorre na expressão “gambito da dama”, que designa uma jogada do xadrez na qual, intencionalmente, o jogador sacrifica uma peça para ganhar outras depois.

Esta artimanha enxadrística empresta seu nome à série da Netflix “O Gambito da Rainha”, em que “dama” foi traduzida como “rainha” para corresponder melhor ao título original, “The Queen’s Gambit”. Se você não conhece a série, pode acompanhar um resumo no vídeo a seguir (com spoilers):

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A trama gira em torno da protagonista Elizabeth Harmon, que aos nove anos de idade se revela uma prodigiosa jogadora de xadrez e cresce ganhando competições internacionais nos tabuleiros, enquanto perde reiteradamente a batalha contra o vício em calmantes e outras substâncias lícitas e ilícitas.

O primeiro contato de Elizabeth com os calmantes acontece ainda na infância, no orfanato em que vivia. A instituição oferece o medicamento como um meio supostamente inofensivo de pacificação de comportamento, mas em determinado momento da história surge uma lei estadual que extingue abruptamente tal prática, bloqueando o acesso da menina às suas pílulas diárias. Disso advém uma crise de abstinência e outros desdobramentos severos ao seu desenvolvimento humano e à sua trajetória no xadrez.

Essa proscrição dos calmantes via canetada legislativa pode suscitar um debate sobre as políticas públicas de combate às drogas, na medida em que, para boa parte dos entorpecentes difundidos mundo afora, a administração pública continua se pautando pelo roteiro clássico:

1) detecta-se o uso desordenado de uma substância nociva;

2) determina-se o seu banimento por força de lei;

3) força-se o cumprimento do item 2.

Os países que, em décadas recentes, regularam o acesso às drogas, em vez de continuar tentando extirpá-las totalmente de seu território (vide Portugal), estão aparentemente dando curso a uma espécie de gambito da dama: perdem algo no curto prazo (controle sobre o uso) para tentar atingir a vitória no final (reduzir o uso de drogas, ainda que não totalmente).

No Brasil, as drogas ilícitas são tratadas segundo o roteiro clássico, mas quando se trata de álcool e tabaco, o gambito da dama emerge com vigor. Basta analisar como aqui é tratado o fumo: o sacrifício inicial são os custos que as doenças pulmonares decorrentes do vício causam aos serviços públicos de saúde, e a vitória almejada é a diminuição gradual da base de fumantes, com base em campanhas educativas estampadas nos maços de cigarro.

Tanto o caso português como o brasileiro dão conta de que a solução para o flagelo da dependência química é algo ainda a se construir. Os diferentes roteiros têm defensores e detratores, mas apresentam como espinha dorsal algum mecanismo que, conforme mencionado, envolve dar um passo para trás para, então, poder dar dois para a frente. E, tal qual acontece numa partida de xadrez, o sucesso nesse campo requer um equilíbrio entre coragem, planejamento e prudência.

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