Relembrando Rawls

No início dos anos 70, o filósofo norte-americano John Rawls (1921 – 2002), professor de Harvard, publicou o livro “Uma Teoria da Justiça”, em que apresentava uma teoria plausível para a promoção da justiça numa sociedade democrática. A proposta de Rawls baseava-se num “contrato social” a ser celebrado pelos “pais fundadores” de uma sociedade, e se materializava em princípios que deveriam ser vistos como regras de pura razão, sem conteúdo material pré-definido. Uma proposta que mesclava elementos kantianos (as regras enunciadas como imperativos) e rousseaunianos (a ideia de contrato).

 A obra provocou imensa polêmica e fez com que Rawls se tornasse o mais discutido cientista político do século XX, e mais de cinquenta anos após sua publicação, permanece disponível na maioria dos idiomas. Em linhas bastante gerais, o que Rawls propunha era:

  1. Cada pessoa deve ter acesso ao mesmo “pacote” de direitos e liberdades que os demais, de modo que o direito de uma pessoa não conflite ou prejudique a outra;
  2. Quaisquer desigualdades sociais deveriam ser ordenadas de modo a beneficiar as pessoas menos favorecidas na sociedade, e só podem resultar de cargos ou posições igualmente acessíveis a todos.

Rawls acreditava que esses princípios seriam adotados por qualquer pessoa racional que estivesse em situação de desconhecimento de sua posição na sociedade. Os princípios de Rawls motivaram múltiplas respostas (dentre as quais a de Robert Nozick) e, evidentemente, esperam até hoje por aplicação empírica. Neste pequeno texto, meu objetivo não é criticar nem defender o pensador norte-americano, mas levantar algumas considerações que jogam dúvidas à desejabilidade – não à viabilidade – de sua proposta.

Em primeiro lugar, a primazia da justiça. Desde os gregos se acredita que a justiça é o valor supremo em uma sociedade. Ninguém parece contestar essa fórmula, mas a maioria se atrapalha no momento de definir justiça. O conceito pode ser positivado no Direito, mas como fórmula filosófica levanta mais perguntas do que respostas; a materialização do conceito de justiça torna difícil de aplicar o princípio geral e de razão pura que Rawls defendia.

Em segundo lugar, há o problema da evolução. Seres vivos e sociedades evoluem, e é muito bom que o façam, mas a natureza não é um modelo de justiça, pelo menos não aos nossos olhos – e a evolução é um fenômeno natural que não pode ser considerado justo, como Hayek lembrou no final dos anos 80. Supondo-se que se defina uma fórmula material para a justiça, e que essa fórmula seja aceitável para todos, o que fazer quando a evolução natural da sociedade levar a questioná-la? Como modificar o conteúdo dessa fórmula sem prejudicar direitos adquiridos? Como convencer democraticamente as pessoas de que a melhor coisa a fazer é mudar a fórmula porque as mudanças sociais o exigem?

Meu terceiro ponto a levantar é a subordinação da liberdade à justiça. Liberdades individuais, de acordo com Rawls, devem existir para promover a justiça, entendida como fim último da sociedade. Mas não seria a liberdade um valor maior? Não se defende, evidentemente, uma liberdade absoluta, sem quaisquer restrições, mas acredito ser necessário defender o máximo de liberdade para cada um de modo a não prejudicar a liberdade de outrem. E se ela tiver que ser “gerenciada” para garantir a justiça – que, como se sabe, não tem uma definição universal – como se pode garantir que essa gestão não a reduza excessivamente? Veja-se também que a justiça, conforme o segundo princípio de Rawls, passa por reduzir desigualdades sociais; igualdade se torna um objetivo mais relevante do que liberdade.

Por fim, resta um aspecto mais complexo do que todos os outros. Rawls deixa claro que os princípios da justiça são aqueles que valeriam para uma sociedade de seres humanos racionais. Mas somos puramente razão? A vida deve ser organizada exclusivamente em bases racionais? Acredito que não. A vida inteiramente racionalizada teria que ser planejada, e todo plano exige perfeito conhecimento do ambiente em que irá funcionar, bem como não pode deixar nada ao acaso. Afetos e crenças, por exemplo, não ganham em nada com a racionalidade – mesmo em sua vertente substancial – porque se realizam na vida, não no pensamento.

Rawls faleceu há exatos vinte anos. Uma prova da vitalidade do seu pensamento é que ele continua sendo discutido; por outro lado, o fato de estarmos desde 1971 tentando chegar a uma solução para suas dificuldades faz pensar se o debate sobre os princípios da justiça irá um dia acabar. Honestamente, espero que não, e por isso relembrei Rawls – e o convido a fazê-lo.

BIBLIOGRAFIA

HAYEK, F. A. The fatal conceito. Chicago: University of Chicago Press, 1988.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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