O poço da Netflix e o problema da criação artificial de solidariedade

Lançado no dia 20 de março, o longa espanhol O Poço, produção original da Netflix vem angariando a atenção de crítica e público, seja pelo seu estilo de filmagem incômodo e com cenas graficamente chocantes, lembrando o movimento do cinema extremo francês, encabeçado por Gaspar Noé, especialmente por seu longa Irreversível, de 2002 e muito bem definido por Alexandra West no seu livro Films of the New French Extrimity: Visceral Horror and National Identity; seja pelas provocações de ordem politica e social levantadas durante o enredo, que vão desde considerações acerca da desigualdade social e distribuição dos recursos dentro de uma sociedade, passando por aforismas relativos a natureza humana e culminando em uma possível (a depender da interpretação do espectador) discussão de ordem metafísica.

Sob a direção de Galter Gaztelu-Urrutia nos são apresentados dois personagens principais, Goreng, que a princípio parece ser o herói da estória e o próprio Poço, que tem o nome oficial de Centro Vertical de Auto-Gestão. Este é uma espécie de prisão voluntária, onde os detentos se encarceram voluntariamente durante um período que eles mesmos determinaram. Alguns buscam parar de fumar, controlar a ansiedade, ou mesmo terminar um livro, todos tem o direito de levar um objeto e Goreng escolhe uma cópia de Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes.

A dinâmica do Poço parece bem simples: ao se internar na unidade cada detento informa seu prato favorito, uma vez lá dentro ele acorda em um andar aleatório onde permanecerá por um mês. Cada andar é um cubículo simples, com poucos móveis, compartilhado por dois detentos e com um vão aberto no meio, por onde passa uma plataforma, de cima para baixo, como um elevador.

Esta plataforma contém um banquete, onde teoricamente deve haver o prato favorito de cada detento, ela começa a descer primeiro andar e deve seguir até o último. A plataforma para durante alguns instantes em cada andar, onde os detentos têm o direito de comer tudo que conseguirem durante o tempo determinado. Logicamente apenas um prato não é o suficiente para satisfazer um adulto durante 24 horas e os que acordaram nos andares mais elevados são beneficiados, pois podem se alimentar de sua refeição e de quantas outras conseguirem, sendo que os azarados que acordaram em um andar baixo provavelmente não terão acesso a alimento algum e provavelmente perecerão de fome.

O primeiro companheiro de cela de Goreng, Trimagassi, detento já experiente, tenta explicar-lhe essa lógica de funcionamento do Poço, ao afirmar que ali existem três tipos de pessoas, as de cima, as de baixo e as que caem. Em um primeiro momento Goreng tenta resistir a dinâmica apresentada e se alimenta apenas daquilo que lhe é estritamente necessário. Tal atitude altruísta cai por terra quando Goreng acorda na cela 171 e se depara com o mínimo de comida por um mês.

Aqui parece haver uma crítica muito simples e rasteira ao sistema capitalista de produção, repete-se a combalida falácia de que “se todos consumissem apenas o necessário, haveria o suficiente para que ninguém passasse por nenhuma necessidade”, ignorando por completo o fenômeno da escassez.

Avançando um pouco no enredo, Trimagassi não é mais parte do Poço e Goreng acorda em um andar privilegiado com sua nova companheira Imoguiri. Ex-funcionária da administração da unidade, ela sempre come o mínimo que precisa e prepara dois pratos para os detentos imediatamente abaixo, também com quantidade ínfima de comida.

Imoguiri pede incansavelmente que seus companheiros da cela inferior repitam o processo, acreditando que dessa forma conseguiria prover o mínimo necessário até a última cela. Sem sucesso, ela é ridicularizada todas as vezes.

Goreng mostra-se curioso com a atitude da companheira, que o revela que o Poço nada mais é do que um experimento social que tenta criar artificialmente o que ela chama de “solidariedade espontânea” (o que por si só já é uma evidente contradição). Este é o ponto nos interessa para o debate acerca da gestão pública e da moralidade na distribuição de riqueza.

O discurso de Imoguiri parece trazer de volta o Goreng idealista do começo da estória, mas diferente de sua simpática companheira, ele se mostra extremamente agressivo e autoritário, ameaçando destruir toda a refeição se os detentos da cela de baixo não colaborarem com o seu plano pretensamente humanitário. Essa nova faceta apresentada por Goreng parece dominar o personagem, agora fascinado por sua própria utopia, e transformar sua personalidade.

Em mais um avanço de roteiro, Goreng agora se junta a um novo companheiro, Baharat, de novo em um nível privilegiado e objetiva colocar seu plano em prática. Eles descem junto com a plataforma e tentam obrigar que o nível inferior contribua e comam apenas o necessário. Os detentos mais frágeis colaboram mediante coerção verbal e ameaças físicas, mas quando a dupla se depara com adversários fisicamente superiores, ambos decidem que é hora de se armar com barras de ferro e partir para vias de fato, quando não assassinato, de todos aqueles que não estivessem de acordo, em uma grotesca sequencia gráfica que se apresenta ao espectador.

Goreng tinha uma ideia nobre, mas sua paixão ideológica o cegou e, na tentativa falida de implementar suas ideias, eliminou seu senso de realidade (como ideologia geralmente o fazem) o levando a executar com crueldade boa parte daqueles que outrora desejou proteger. Para tornar o desfecho mais cruel (ao melhor estilo de Gaspar Noé), conforme a plataforma vai descendo ele descobre que mesmo que todos aderissem a seu plano, ainda assim faltaria comida, uma vez que ele havia calculado suprimento suficiente para 300 andares, mas descobre que o Poço contava com 333. A implacável realidade da escassez demonstrou-se mais real que o sonho de Goreng.

Em uma clara, apesar de bastante sútil, alusão aos desastres socialistas do século XX, O Poço nos lembra da incapacidade de gerar artificialmente a solidariedade espontânea e da carnificina que sempre foi gerada quando Estados tentaram criar “caridade forçada”, sempre sobre o pretexto da transformação do mundo em um lugar melhor, da antecipação do paraíso na terra.

A solidariedade e a caridade são virtudes moral e teologal, respectivamente, caracterizadas pelo amor ao próximo, o desapego de si mesmo e o senso de comunidade (koinonia) e nesta condição devem ser desenvolvidas de forma livre, uma vez que virtude alguma pode ser cultivada mediante coerção e assim não podem ser artificalizadas ou forçadas a existir pela violência ou ameaça da mesma por uma entidade dominante ou algum individuo autoritário, como o que se converteu Goreng.

Com um estilo marcante e único, que apenas remotamente faz lembrar filmes como Jogos Mortais, Scape Room e Expresso do Amanhã, estética peculiar (apesar do ambiente enegrecido de boa parte do filme facilitar o trabalho do diretor de fotografia), ambientação claustrofóbica e alguns easter eggs espalhados, como o fato de Goreng passar o filme lendo Dom Quixote e sendo ele mesmo um arauto de uma causa perdida, o filme é um sucesso em termos de entretenimento, prendendo a atenção de quem assiste em um misto de curiosidade, repulsa e sentimento de revolta, onde propositadamente toda a simpatia desenvolvida pelo personagem Goreng durante duas horas de película é despedaçada nos últimos minutos, tal qual a popularidade de certos governantes autoritários que, face a primeira escassez produtiva, mostram seu verdadeiro espectro facínora. Situação tão peculiar as nações latino-americanas colonizadas justamente por espanhóis, como os personagens do Poço.

Apesar de bastante raso, convertendo-se em um verdadeiro toca-discos viciado de clichês, nas críticas referentes a condição egoísta do homem, da produção e da desigualdade social e até mesmo um apelo foucaultiano a metáfora das “prisões” , a obra é também um sucesso em suscitar a discussão sobre a impossibilidade da criação artificial da solidariedade e o desastre da distribuição forçada de bens. Apesar de ter sido recebido com adoração por muitos movimentos e intelectuais coletivistas por sua explícita crítica ao sistema produtivo capitalista, a obra contém uma incisiva e elegante crítica ao socialismo, que pode passar despercebida à primeira vista, mas que se converte no principal e mais interessante argumento defendido por Gaztelu-Urrutia.

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