Meu rosto me pertence?

Presentes em inúmeros locais públicos mundo afora, sistemas que captam imagens faciais e as processam a partir de grandes bancos de dados biométricos costumam ser pilotados por governos que se dizem preocupados com a segurança da população e a prevenção contra ataques terroristas e outros incidentes.

Que as câmeras inibem crimes ou auxiliam na sua investigação, não há a menor dúvida. Mas há que se levantar um sério debate sobre a dimensão ética envolvida na captação maciça e não autorizada de vídeos e fotografias da população. Afinal, ninguém discute que o direito à privacidade é um valor fundamental da sociedade contemporânea e cuja salvaguarda deveria ser defendida por qualquer país que se diga democrático. Mas, nesse caso específico, cabe questionar: até que ponto seu rosto é, de fato, “seu”?

Para tentar responder a essa questão, imagine-se caminhando por uma rua movimentada do centro da cidade. Num dado momento, você passa por uma pessoa desconhecida. Sem que você perceba, essa pessoa o encara por dez segundos e, em seguida, desenha seu rosto numa folha de papel.

Na cena acima, você exerce seu direito de caminhar pelas ruas, assim como a pessoa por quem você passou exerce o direito de olhar ao redor e desenhar o que lhe convier, incluindo rostos de pedestres.

Agora, imagine a mesma cena, mas substitua o desenho na folha de papel por uma filmagem do seu rosto obtida com uma câmera de celular. Provavelmente surgirá algum incômodo, pelo fato de que a gravação fornece um registro preciso de como você é. Mas, ainda assim, apontar uma câmera em público para qualquer direção não é, necessariamente, uma violação de privacidade.

Revisitando a cena uma última vez, suponha que a pessoa que te encarou e filmou seja um policial em horário de expediente. Agora, sim, surge um desconforto considerável, muito provavelmente pela percepção de que sua imagem foi capturada por alguém que não tinha direito algum para fazê-lo.

A terceira versão da situação hipotética sugere o Estado como responsável por examinar, de alguma forma, o seu rosto, e isso é o que parece despertar a preocupação com a privacidade. Logo, é de se pensar se o maior problema na realidade não seria “o que” foi filmado, mas “quem” filmou.

Dito isso, infere-se que a posse sobre o próprio rosto é o que menos importa nessa discussão. É na posse estatal de imagens obtidas sem autorização que está o cerne das preocupações sobre a privacidade. O verdadeiro questionamento a ser feito é: o que será feito com as imagens e, consequentemente, da identificação pessoal que elas permitem? Enquanto o Estado não puder comprovar o uso que está fazendo dos dados obtidos via reconhecimento facial, a pergunta persistirá, e só sobrará ao cidadão se mobilizar para que esse uso seja submetido a políticas de transparência o quanto antes.

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