Empreendedorismo: Os Cegos e o Elefante

Nesta série de 3 capítulos apresentaremos o empreendedorismo por meio de suas três principais Escolas: Econômica, Comportamental e Gerencial. A parábola ‘Os cegos e o elefante’1 é utilizada ao longo dos capítulos – tomamos a liberdade em fazer algumas adaptações para o fim didático.

Em uma cidade da Índia moravam seis sábios, todos cegos. Por serem sábios, todas as pessoas que tinham problemas os consultavam. Embora fossem companheiros, havia uma certa rivalidade entre eles, que, de vez em quando, discutiam sobre o qual seria o mais sábio. Certa noite, depois de muito conversarem acerca da verdade da vida e não chegarem a um acordo, o sexto sábio ficou tão aborrecido que resolveu ir morar sozinho em uma caverna no alto da montanha, dizendo aos seus companheiros: ‘Somos cegos para que possamos ouvir e compreender a verdade da vida e aconselhar os necessitados. Em vez disso, vocês ficam aí brigando, como se quisessem ganhar uma competição.’ No dia seguinte, chegou à cidade um rei montado num um grande elefante, que ele usava para trabalhos pesados ​​e para assustar seus inimigos em batalha. Os cegos jamais haviam tocado nesse animal e correram para o encontro dele.

No capítulo de hoje, o primeiro dos três, falaremos sobre a Escola Econômica.

O primeiro sábio, tateando o ar, agarrou a tromba do elefante. O elefante surpreso começou a movimentar sua tromba. O sábio, por sua vez, assustado, exclamou: ‘Este elefante é como uma cobra, mas muito grande e agitada.’

O empreendedorismo surge por meio dos escritos do economista Richard Cantillon (aprox. 1680-1734), banqueiro franco-irlandês cuja obra ‘Essai Sur la Nature du Commerce en Général’, publicada postumamente em 1755, atrelou o empreendedorismo à economia e o empreendedor ao seu papel no desenvolvimento econômico. O economista reconheceu que as discrepâncias entre a demanda e a oferta em um mercado criam oportunidades para comprar por um preço e vender a outro mais alto. Ele chamou de empreendedor aqueles que recebem um chamado para exercer seu julgamento de negócio e aproveitam as oportunidades de lucro não realizadas (HÉBERT; LINK, 1989; LANDSTRÖM, 2005).

O empreendedor é considerado um protagonista da atividade econômica (STEVENSON; JARILLO, 1990) que se envolve nas trocas de mercado com a finalidade de obter lucro (HÉBERT; LINK, 1989). Ainda na definição de Cantillon, encontra-se a ênfase no risco: o empreendedorismo é visto como uma questão de previsão e disposição para assumir riscos (LANDSTRÖM, 2005).

Cantillon diferencia o empreendedor do capitalista. Se o empreendedor é aquele que faz escolhas conscientes sobre a alocação de recursos a fim de explorá-los de forma a obter o maior retorno financeiro possível, o capitalista é aquele que apenas fornece o capital (LANDSTRÖM, 2005). Mesmo diante da diferenciação entre um e outro, o entendimento do empreendedor como um ‘homem de negócios’ perdurou (STEVENSON; JARILLO, 1990).

Mudanças ocorriam lentamente nesse período e, gradativamente, passaram a existir novas condições de produção e novas formas de relações sociais, emergindo uma nova forma de pensar. Essa nova forma de pensar impactou também a ciência econômica e o economista, sendo Adam Smith (1723-1790) um dos principais responsáveis. Seus escritos estabeleceram as bases para a teoria econômica moderna, entretanto, o autor não diferencia o empreendedor do capitalista – o que lhe rendeu críticas. A falha em isolar a função empreendedora da propriedade de capital tornou-se uma prática padrão entre os economistas clássicos (LANDSTRÖM, 2005).

Após Adam Smith, o economista francês Jean Baptiste Say (1767-1832) foi o responsável por retomar a questão do empreendedorismo distinta do capital. Dividindo o desenvolvimento industrial em três diferentes atividades, ele diferencia a pesquisa, o empreendedorismo e a produção. A primeira é conduzida por pesquisadores com a finalidade de geração de conhecimento: a transformação desse conhecimento em produtos utilizáveis é função dos empreendedores, também responsáveis por organizar os fatores de produção e, por fim, a produção é realizada pelos trabalhadores. Na visão de Say, o empreendedor era quem organizava e combinava meios de produção com o objetivo de produzir bens. Entretanto, a função não ocorria ‘por acaso’, o empreendedor deveria desenvolver um bem ou serviço que fornecesse alguma forma de valor ou utilidade e, assim como Cantillon, também reconheceu o risco envolvido na função (LANDSTRÖM, 2005).

Uma das definições mais conhecidas e utilizada até os dias de hoje – considerada a definição mais citada dentro do campo do empreendedorismo – foi cunhada por Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) (FERREIRA; PINTO; MIRANDA, 2015; FERREIRA; LOIOLA; GONDIM, 2020). Em seu livro, ‘Teoria do Desenvolvimento Econômico’, publicado em 1911, o autor constrói uma nova teoria econômica abordando temas como a importância do capital, a criação de riqueza e ciclos econômicos. Considerado pai do empreendedorismo, seus escritos sobre o fenômeno tiveram grande impacto enquanto seus outros pensamentos não foram facilmente aceitos dentro da economia (LANDSTRÖM, 2005).

Segundo Schumpeter (1982), o sistema econômico está predominantemente em equilíbrio e o que faz com que o crescimento econômico aconteça não é a acumulação de capital, mas a inovação, a qual surge do processo de ‘destruição criadora’. Uma vez iniciada, a destruição cria o desejo de consumo de algo que até então não existia, gerando e alterando hábitos de consumo. As inovações, também chamadas de novas combinações, podem ser novos produtos ou serviços, novos métodos de produção, novos bens de investimento, novas organizações e/ou novos mercados (SCHUMPETER, 1982; LANDSTRÖM, 2005).

O empreendedor é o agente responsável por romper o equilíbrio do sistema econômico por meio da inovação. Ele, o empreendedor inovador, é imitado por um ‘enxame’ de empreendedores não inovadores, que investem recursos para produzir e imitar as inovações que foram criadas (SCHUMPETER, 1982; STEVENSON; JARILLO, 1990). Ainda, ele argumenta que os empreendedores são caracterizados pelo desejo de fundar reinos privados, a vontade de conquistar e a alegria de criar (LANDSTRÖM, 2005).

A visão de Schumpeter foi um divisor de águas para o campo (STEVENSON; JARILLO, 1990). Os estudos antes dele são considerados clássicos e posteriores a ele seguiram três principais tradições intelectuais: a Escola Alemã, a Escola Austríaca e a Escola de Chicago (HÉBERT; LINK, 1982).

Schumpeter (1883-1950) foi o fundador do pensamento da Escola Alemã, tendo seus estudos continuados por Cole (1889-974), que manteve as ideias originais do famoso economista, tendo a inovação como essência do empreendedorismo (CUERVO; RIBEIRO; ROIG, 2007).

A Escola Austríaca é representada por Kirzner (1930-) com base nos estudos de von Mises (1881-1973) e von Hayek (1899-1992) (LANDSTRÖM, 2005). O pensamento austríaco difere do pensamento alemão principalmente na questão do equilíbrio do mercado. Em vez de criar desiquilíbrios, o empreendedor, para a Escola Austríaca, busca desiquilíbrios existentes e faz a tentativa de reequilibrar o sistema econômico (KIRZNER, 1979).

O termo ‘alerta empreendedor’ foi cunhado pelos estudiosos da Escola e significa que o empreendedor precisa estar alerta para descobrir tais desequilíbrios, esses que são considerados oportunidades que resultarão em lucro. Entretanto, a descoberta de oportunidades só é possível devido às informações sobre necessidades e recursos de diferentes atores que auxiliam o empreendedor a coordenar recursos de forma mais eficaz e, consequentemente, conduzir seus processos em direção ao equilíbrio (KIRZNER, 1979; LANDSTRÖM, 2005).

Portanto, para a Escola Austríaca, o empreendedor é aquele que possui conhecimento superior das imperfeições do mercado e sua função é a destruição dessas imperfeições ou desiquilíbrios, por meio da percepção e exploração de oportunidades de lucro, gerando então o equilíbrio dentro da economia de mercado (CUERVO; RIBEIRO; ROIG, 2007).

A Escola de Chicago, também conhecida como neoclássica, é representada por Knight (1885-1972), que retoma a questão de risco e incerteza, surgida dentro dos estudos clássicos (HÉBERT; LINK, 1982). Em sua tese, ‘Risk, Uncertainty and Profit’ (1916, revisada em 1921), Knight aprofunda a questão e propões três classificações: risco, incerteza e incerteza verdadeira.

O risco existe quando os resultados, apesar de incertos, podem ser previstos com algum grau de probabilidade, isto é, o futuro pode ser conhecido e quantificável. A incerteza surge quando a probabilidade dos resultados não pode ser calculada, isto é, o futuro é desconhecido podendo ser estimado a partir de estudos dos eventos probabilísticos ao longo do tempo. Já a incerteza verdadeira, ou incerteza Knightiana, ocorre quando o futuro não é apenas desconhecido, mas também incognoscível, com instâncias inclassificáveis ​​e uma distribuição inexistente de resultados (SARASVATHY et al., 2003).

Essa escola considera que o empreendedorismo é caracterizado principalmente pela incerteza verdadeira pois, se a mudança no mercado for previsível, não há oportunidade de lucro. Assim, o empreendedor recebe retorno por tomar decisões em condições de incerteza verdadeira e sua principal capacidade é lidar com ela (LANDSTRÖM, 2005).

Em suma, os estudos da Escola Econômica se subdividem em quatro tradições: os estudos Clássicos, da Escola Alemã, da Escola Austríaca e da Escola de Chicago. O quadro 1 apresenta o resumo dessas tradições.

Quadro 1 – Quadro Resumo Escola Econômica

TradiçãoPrincipais estudiososContribuição
Estudos ClássicosCantillon (aprox. 1680-1734); Say (1767-1832)Função do empreendedor, comprar por um preço e vender por outro com o objetivo de obter lucro. Disposição para assumir riscos. Diferença entre empreendedor e capitalista.
Escola AlemãSchumpeter (1883-1950); Cole (1889-974)O empreendedorismo é relacionado a inovação. O mercado está em equilíbrio e o empreendedor é quem gera a inovação por meio da destruição criadora.
Escola AustríacaVon Mises (1881-1973); Von Hayek (1899-1992); Kirzner (1930-)O empreendedor é quem identifica os desiquilíbrios do mercado e busca equilibrá-lo. Alerta empreendedor. Identificação e exploração de oportunidades.
Escola de ChicagoKnight (1885-1972)A questão do risco assumido pelo empreendedor é retomada e aprofundada. Diferença entre risco, incerteza e incerteza verdadeira.

Fonte: Elaborado pelos autores (2021).

Decorrente o exposto, os estudos que investigam o empreendedorismo, em um primeiro momento, buscaram definir o empreendedor com base na função que ele desempenha no âmbito econômico (VECIANA, 2007), ou seja, grande parte do foco dos estudos é voltado à definição da função empresarial. Uma vez que a função do empreendedor foi definida, o foco dos estudos atuais passou a ser os resultados gerados a partir das atividades empreendedoras (STEVENSON; JARILLO, 1990). Além disso, os estudos trabalham temas como: inovação, alerta empreendedor, risco e incerteza (VECIANA, 2007). Para os estudiosos da Escola Econômica o empreendedorismo está na raiz da melhoria econômica, frisando a implicação de que ‘quanto mais empreendimentos, melhor’ (STEVENSON; JARILLO, 1990), passando a explicar o lucro econômico por meio da função empreendedora (VECIANA, 2007).

No próximo capítulo falaremos sobre a Escola Comportamental, não perca!

Referências:

CUERVO, Á.; RIBEIRO, D.; ROIG, S. Entrepreneurship: concepts, theory and perspective. Introduction. In: CUERVO, Á.; RIBEIRO, D.; ROIG, S. (ed.). Entrepreneurship: concepts, theory and perspective. Heidelberg: Springer, 2007. p. 1-20.

FERREIRA, M. P. V.; PINTO, C. F.; MIRANDA, R. M. Três Décadas de Pesquisa em Empreendedorismo: uma revisão dos principais periódicos internacionais de empreendedorismo. REAd. Revista Eletrônica de Administração, v. 21, n. 2, p. 406-436, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-2311.0342014.52536.

FERREIRA, A. S. M.; LOIOLA, E.; GONDIM, S. M. G. Produção científica em empreendedorismo no Brasil: uma revisão de literatura de 2004 a 2020. Revista Gestão e Planejamento, v. 21, p. 317-393, jan./dez. 2020. DOI: 10.21714/2178-8030gep.v.21.5618.

HÉBERT, R. F.; LINK, A. N. In search of the meaning of entrepreneurship. Small business economics, v. 1, n. 1, p. 39-49, 1989.

KIRZNER, I. M. Producer, entrepreneur and the right to property. In: KIRZNER, I. M. Perception, Opportunity, and Profit: Studies in the Theory of Entrepreneurship. Chicago: University of Chicago Press, 1979, p. 1-17.

LANDSTRÖM, H. Pioneers in entrepreneurship and small business research. Berlin/Heidelberg: Springer Science & Business Media, 2005.

SARASVATHY, S. D. et al. Three views of entrepreneurial opportunity. In: ACS, Z. J.; AUDRETSCH, D. B. (ed.). Handbook of entrepreneurship research. Boston: Springer, 2003. p. 141-160.

SCHUMPETER, J. A. The theory of economic development: An inquiry into profits, capital, credit, interest, and the business cycle (1912/1934). Piscataway, Nova Jersey: Transaction Publishers, 1982.

STEVENSON, H. H., JARILLO, J. C. A paradigm of entrepreneurship: Entrepreneurial management. Strategic Management Journal, v. 11, n. 1, p. 17–27, 1990.

VECIANA, J. M. Entrepreneurship as a scientific research programme. In: CUERVO, Á.; RIBEIRO, D.; ROIG, S. (ed.). Entrepreneurship: concepts, theory and perspective. Heidelberg: Springer, 2007. p. 23-71.

1 Não se sabe a origem da parábola, alguns a atribuem a cultura Hindu, Jaina ou Budista. A primeira versão da rastreável parece ser no texto budista Udana 6.4, datado de meados do primeiro milênio a.C. Entretanto, acredita-se que ela é mais antiga que o próprio texto budista. Sua popularidade ascendeu através do poema de John Godfrey Saxe (1816-1887).

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