Os Intelectuais Ungidos, de Michael Oakeshott a Thomas Sowell

Michael Oakeshott, filósofo inglês, nasceu e morreu na Europa do século XX, sendo assim testemunha ocular do renascimento de grandes Estados autoritários e um sem-número de guerras e confrontos civis que estes criaram ou patrocinaram. O seu meio social e as condições impostas pelo seu tempo deram forma a investigação de Oakeshott, que tratou de temas relacionados à educação liberal, ao conservadorismo moral e filosófico e ao racionalismo político, ao qual ele ironicamente chamava de política da perfeição.

O racional político é aquele indivíduo que acredita que se separou de todo o conhecimento tradicional da sociedade, nega o valor de qualquer educação mais extensiva do que o mero treino de uma técnica específica de análises. O racionalismo político vai gerar o que Oakeshott chamou de políticas de fé, as quais existem em contraposição as políticas do ceticismo.

A política de fé tem esse nome não por uma razão religiosa, mas porque está construída sobre uma crença absoluta e incontestável em dogmas supostamente racionais e em uma suposta capacidade infinita do ser humano para ser o que desejar ser. É o tipo de política que dá ao governo uma carta em branco para desenhar a sociedade da maneira que ele quiser, nem que isso tenha que ser feito por meio da coerção. Não existia exemplo melhor no século XX do que as três doutrinas autoritárias dominantes, e chamadas de irmãs por Oakeshott, o socialismo, o fascismo e o nacional-socialismo

Por outro lado, a política do ceticismo encontrava grande respaldo na doutrina católica e na tradição liberal, uma vez que para ambas é impensável a noção de que os homens têm autoridade para planejar e impor um modo de vida para a sociedade, o que se configura como uma ignorância pretenciosa defendida por indivíduos que não têm respeito pelo gênero humano e estão dispostas a torná-los meios para a obtenção de suas ambições. Cada uma defende esse ponto por seus motivos particulares, para a doutrina católica essa pretensão ataca diretamente a dignidade da pessoa humana e inibe o exercício das virtudes, o qual necessita de liberdade, para a tradição liberal, fere o princípio básico de que um ser humano jamais pode ser propriedade de outro.

A materialização mais visível entre as duas formas de pensar a política é representada pelas diferentes respostas da pergunta “o que deve fazer o governo?”. Para a política da fé, o governo é o principal agente do aprimoramento humano, a função do Estado é controlar e organizar a atividade humana, em direção ao bem-viver, para a política do ceticismo, o Leviatã deve limitar-se a manter um mínimo de ordem e estabilidade que permita que a liberdade não seja ameaçada e as instituições, como o mercado, possam funcionar com alguma previsibilidade. Em resumo, a primeira se propõe a trazer o paraíso para a terra, enquanto a segunda propõe apenas não permitir que a terra se torne um inferno.

Dessa forma, a mais perversa consequência da naturalização da política da fé, é que ela atrai para o ambiente político sonhadores e aventureiros que acreditam ter em suas mãos todas as ferramentas e possibilidades de mudar o mundo e criar um paraíso terreno. Foram esses aventureiros de ambição revolucionária os responsáveis pelas grandes tragédias humanitárias da segunda metade do século XX

Na esteira das ideias de Michael Oakeshott surgiu o economista Thomas Sowell. Americano e não inglês, e também um pouco mais recente, Sowell tem background diferente de Oakeshott e, até onde sabemos, não houve comunicação entre eles. Isso não impediu sua convergência de ideias, como a ideia da visão limitada e ilimitado acerca do homem, mas isso fica para um próximo texto.

A despeito de ser professor universitário há mais de 50 anos anos, Sowell se mantém um grande crítico da comunidade acadêmica, e criou grande polêmica em 2010 ao lançar seus livros mais conhecidos, Os Intelectuais e a Sociedade, que causou escândalo em muitos dos seus pares, da mesma forma como já havia feito em 2004, ao publicar Ações Afirmativas ao Redor do Mundo, onde ousou expor a ineficiência de um dos principais dogmas da religião civil que domina a academia ocidental.

Em sua obra de 2010, Sowell expõe, com a mesma perspicácia e crueza que outrora Nelson Rodrigues faria com a burguesia carioca, outra seleta casta de privilegiados: Os Intelectuais Ungidos. Essa casta, composta em sua maioria por acadêmicos, jornalistas e juristas, é signatária do racionalismo político e acredita com todas as forças no cientificismo (a ideia de que o conhecimento científico é superior a toda outra forma de conhecimento dispersa na sociedade, seja conhecimento mitológico, filosófico ou outros). Uma vez que o conhecimento científico é o único válido, a instituição que transmite ele, a universidade, é superior a qualquer outra instituição que transmita conhecimentos diversos: a acadêmica é mais importante que o mercado, o qual informa sobre preços, escassez e produção, é superior à família que transmite conhecimentos de forma intergeracional, é superior as igrejas que mantém vivos conhecimentos tradicionais.

Seguindo a lógica, se a ciência é o único conhecimento válido e, portanto, a universidade é a instituição superior dentre todas as outras, então o profissional da universidade, o intelectual, é o membro superior da sociedade. Nessa posição, o Intelectual Ungido se acha imbuído da missão de coordenar e comandar a sociedade em seus mínimos detalhes, uma vez que ele é o grande esclarecido, o que detém o domínio soberano da técnica, então sabe melhor qual é o jeito que se deve viver, para ele mesmo e para o resto da população, a qual não teve o privilégio de ser também um admirável membro da casta.

Como todo bom membro de casta privilegiada o Intelectual Ungido também dispõe de generosos privilégios, um deles é o de jamais ser cobrado por suas ideias. Caso um engenheiro construa um prédio com erros de fundamento e cause a morte de muitas pessoas ele certamente será responsabilizado e, espera-se, punido. Mas e o intelectual que defende sistemas políticos genocidas? Não há responsabilização clara, ele está imune, poucas obras representam melhor isso do que o filme cambonjano L’Image Manquante, vencedor do prêmio de Cannes de 2013. A obra dirigida por Rithy Pah retrata os horrores e atrocidades da ditadura comunista de Pol Pot, responsável pela morte de 2,5 milhões de pessoas, ao mesmo tempo em que mostra os aplausos e juras de amor proferidas por intelectuais franceses, que viam no tirano um corajoso revolucionário, que guiava a Asia para um brilhante futuro longe do imperialismo europeu.

Mas não é apenas no campo da política ideológica que os Intelectuais Ungidos estão imunes da responsabilização, exemplos não faltam como economistas que ano após ano erram suas previsões sobre inflação e crises de produção e mesmo assim mantém colunas no The New York Times por décadas, administradores públicos responsáveis pelos piores planos anti-inflacionários que se têm noticia e continuam sendo tratados pela imprensa e academia como “referência em gestão”, biólogos que a cada erro estatístico sobre infectologia parecem gozar de mais prestígio social.

Sowell não tem medo de citar diretamente, a título de exemplificação, um membro dessa casta e abre aspas para Ronald Dworking, jurista americano, que afirmou “Uma sociedade mais igualitária é preferível, ainda que essa sociedade prefira a desigualdade”. E por que é preferível? Porque a classe ungida assim definiu, e o povo não esclarecido, seu laboratório social particular, deve passivamente obedecer, não importa se concordem ou não, afinal quem são eles para questionar os Intelectuais Ungidos? E se o povo não esclarecido ainda sim preferir uma política diferente daquela defendida pelos intelectuais? Bom que ela se imponha pela força, afinal eu sei o que é melhor para você, mesmo que isso custe uma mega-inflação ou um pequeno genocídio.

Percebe-se então que os Intelectuais Ungidos, munidos do seu cientificismo, acreditam piamente que tem a capacidade, e mais, o direito natural de comandar toda uma sociedade, e é isso que os faz os representantes par excellence do racionalismo político e, portanto, das políticas de fé.

Que nunca nos falte a virtude da prudência, para que possamos jamais aderir irresponsavelmente a uma política de fé.

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