Dúvida e Certeza

Desde seu início, a pandemia do SARS-CoV-2 (COVID-19) tem suscitado muitos questionamentos, reflexões e estudos em todas as áreas do conhecimento. Não por menos. Vivemos num momento histórico e ímpar que tem impactado cidadãos do mundo todo; aqui no Brasil não escapamos à regra. Em nosso caso, apoiados num frágil sistema político – desde muito tempo a trás – estamos vivenciando, com certo espanto, as rixas e confrontos ideológicos que se afloram em momentos de crise.

Que se pronuncie aqui quem nunca presenciou um desajuste acalorado de opiniões frente àquilo que seus defensores julgavam ser verdade e certeza fundamentadas. Não temos o propósito de discutir o certo e o errado, o bem e o mal. Não juízes, antes, é nossa função refletir e ponderar.

A ponderação desprendida de amarras ideológicas proporciona ao indivíduo lucidez e melhor capacidade de arrazoar sobre suas próprias certezas. “Sob quais convicções as minhas crenças estão consolidadas? A quem ou o que elas servem? Quais seus propósitos? Como minhas certezas me fazem agir em relação ao outro quando este discorda de mim? ” Tais observações não devem ser meras divagações e afirmações de suas convicções pessoais, antes, deve-se estar disposto a colocar em dúvida a motivação de cada resposta.

Nossas certezas devem vir acompanhadas da dúvida. Podemos estar errando ao confirmar verdades que não passam de verdades subjetivas. Um exemplo deste tipo de verdade pode ser encontrado na obra Dom Casmurro, um dos mais famosos romances de Machado de Assis. Bentinho nutria a intensa convicção, por meio de investigações pessoais, que Capitu o havia traído com seu melhor amigo, o Escobar, e que seu filho Ezequiel era na verdade fruto do relacionamento proibido. O trecho abaixo exemplifica um momento de afirmação à suas convicções:

“… mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: ‘Mamãe! Mamãe” é hora da missa! ’ Restituiu-me a consciência à realidade. Capitu e eu olhamos involuntariamente para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura…” (ASSIS, 1994, p. 122).

Bentinho acreditou ter alcançado uma certeza incontestável, pois encontrou fatos e razões que lhe garantiram tal afirmação. Já não existia mais nenhuma dúvida para ele, contudo, o seu erro foi ter chego a uma certeza subjetiva, uma vez que Capitu jamais confessara a traição e ele jamais teve sua prova. É possível que exista uma certeza bem fundamentada sobre algo e que ao fim, revele-se falso.

Numa das passagens de um dos diálogos mais importantes de Platão – denominado Teeteto – Sócrates e seu interlocutor Teeteto dialogam sobre o que de fato é a busca do conhecimento que gera a certeza. Sócrates diz:

“Então, meu jovem, nosso argumento com razão nos censura e mostra que investigamos erroneamente. Quando abandonamos o conhecimento para investigar antes a opinião falsa? Ora, é impossível que alguém a conheça antes de compreender suficientemente o que é conhecimento” (PLATÃO, n.p. p. 54)

O filósofo se refere à necessidade de haver uma adequada assimilação sobre o que é o conhecimento, que conduz e motiva o indivíduo a investigar. É preciso que estejamos conscientes de nossa realidade, colocando em dúvida, ou “entre parênteses” as nossas certezas, buscando de modo insistente a correta compreensão do conhecimento a fim de que possamos nos situar com coerência num momento onde uma simples discordância assume o caráter de laços rompidos.

Reflitamos todos se nossas certezas não são mais do que um ego acariciado por uma ideologia política – qualquer que seja – ou uma subjetividade que não se comprova. Tal exercício é necessário a cada um de nós.

Referências:

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Volume 1. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1994.

PLATÃO. Teeteto – Crátilo. In: Diálogos de Platão. Tradução do grego por Carlos Alberto Nunes. 3a. ed., Belém: Universidade Federal do Pará, 2001

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