Os Irmãos Karamazov de Fiodor Dostoiévski e a moralidade objetiva

Em seu romance Os Irmãos Karamazov, escrito em 1879, Fiódor Dostoiévski nos conta a história de três irmãos (que posteriormente se descobrem quatro), filhos do mesmo pai, mas de casamentos diferentes.

O pai, Fiodor Karamazov, personagem de caráter bastante questionável, mesmo já relativamente bem estabelecido, passa a vida ascendendo econômica e socialmente através dos dotes recebidos por seus vários casamentos, os quais também aplicava em uma rede de bares, sustentando assim seus costumes de bon vivant.

De seu segundo casamento, nascem o segundo e o terceiro filhos, Ivan e Aliocha. O segundo tem um caráter extremamente dócil e vive dentro de um mosteiro, onde deseja permanecer pelo resto da vida, mas é ordenado por seu superior a peregrinar pela Rússia e espalhar seus ensinamentos. Por conta de sua docilidade, Aliocha é o único membro da família que possui boa relação com todos os outros membros e, dada essa condição, assume o posto de moderador das discussões familiares.

Em dada ocasião, já com Aliocha fora do mosteiro, a família convoca uma reunião, motivada principalmente por conta de Dimitri, filho primogênito de Fiodor, militar de carreira respeitável e com costumes que lembram muito o pai. Dimitri, para continuar sustentando os hábitos de bon vivant herdados de seu progenitor, quer se apossar do dinheiro dos dotes das mães, o que acredita ser seu por direito.

Fiodor nega a exigência do primogênito, sem espaços para questionamento, o que cria grande revolta no filho e faz com que ele afirme, em frente a toda a família, que um dia assassinaria o próprio pai.

Dias depois Fiodor realmente é assassinado, o que acarreta na prisão e julgamento de Dimitri. Ele nega veementemente sua culpa e, para nossa discussão nesse momento, realmente não importa quem matou o patriarca da família, importa uma reflexão de Ivan e Aliocha durante o cárcere de Dimitri.

Ambos sabiam que Dimitri era ateu e niilista e que se intitulava como um grande intelectual, apenas não reconhecido. Discutindo sobre as motivações do irmão mais velhos, Ivan chega à conclusão de que “Se Deus não existe, então tudo é permitido” e “Se Deus não existe, muito dificilmente o homem optaria pelo bem ao invés do mal e, em sendo tudo permitido, tudo fica ao critério do homem”

Para Dostoiévski, Dimitri era o filósofo niilista por excelência, aquele que seria capaz de levar o problema da moral até suas últimas consequências. Essa reflexão, que foi capaz de incomodar as certezas até mesmo de pensadores como Sigmund Freud e Jean Paul Sartre, não era uma ameaça de caráter proselitista religioso, na verdade ele afirma que na ausência de uma fonte objetiva para a moral, a própria moral não pode ser objetiva e deve, por contraste, ser relativa, dessa forma conceitos como “certo e errado”, “vício e virtude”, “o bem e o mal” não poderiam existir. Dostoiévski não diz que a crença na existência de Deus fará com que as pessoas sejam boas, apenas que fará com que as pessoas acreditam nesses conceitos.

Essa reflexão de Dostoiévski nasce de sua cruzada pessoal contra os niilistas russos, ancestrais dos bolcheviques e tão duramente criticados por Friederich Nietzsche, quando este propunha seu niilismo alegre. Estes niilistas efetivamente defendiam a inexistência de uma moral objetiva e que tudo lhes seria lícito para cumprir seu grande objetivo de reformar a sociedade russa. Eles provavelmente chancelariam, sem peso na consciência, as 5 milhões de mortes causadas pela revolução russa, afinal por que matar seria errado, sem a moralidade objetiva, matar é errado apenas pra quem acredita, seja pelo motivo que for, que matar é errado e toda a moralidade não passa de uma opinião. “Assassinato é errado” para essa corrente, era equivalente a “Eu não gosto de assassinato”.

A grande pergunta de Dostoiévski era até que ponto uma sociedade niilista, que não acredita em Deus e portanto não acredita em moral objetiva, não pode simplesmente decidir um dia que todos os tabus serão suprimidos, decidir que o melhor para ela seja eliminar todos aqueles que são considerados “desnecessários”, que são “estorvos”, como era o pai de Dimitri.

Existem duas formas de interpretar a afirmação de Ivan, mas ambas concluem que a ética exige Deus. A primeira diz que sem Deus, não existe motivo algum para que o homem seja ético, porque suas ações morais são motivadas pelo medo do castigo divino ou pela vontade egoísta de ser recompensado. Já a segunda, mais sofisticada, diz que Deus é a fonte da obrigação ética e única razão pela qual nós devemos seguir obrigações éticas é porque alguém, maior do que nós, o legislador divino, nos disse que devemos.

A reflexão de Dostoiévski não é uma unanimidade, os utilitaristas dizem que devemos ser éticos para alcançarmos a felicidade, enquanto os kantianos dizem que devemos ser éticos porque é isso que pede a razão.

Mas então, caso discordemos de Dostoiévski, algumas questões precisam ser feitas:

Nossa felicidade ou a razão são suficientes para nos obrigar a ser éticos?

Caso sejam, na ausência de um legislador divino, incapaz de errar, quem pode definir o que é “felicidade” ou “racional”?

Caso não sejam suficientes, e a moralidade tenha que derivar de algo maior do que nós, mas que não é Deus, o que é esse algo? O Estado, uma ideologia, uma religião civil?

Back To Top