Black Mirror e a morte da ética

Giges era um pastor de ovelhas, um cidadão respeitável moralmente, que trabalhava para o soberano da Lídia. Após uma grande tempestade e um tremor na terra, abriu-se uma fenda no local onde ele pastoreava o rebanho. Nesta fenda, Giges encontrou um cadáver, que tinha um anel de ouro na mão. Ao perceber o anel, o pastor acaba se apropriando dele. Chegando na comunidade, Giges participa de uma reunião com outros pastores. Giges, sentado no meio dos outros, deu, por acaso, uma volta no anel, e, ao fazer isso, tornou-se invisível para os que estavam ao redor, os quais falavam dele como se tivesse ido embora. Admirado, passou de novo a mão pelo anel. Assim que o fez, tornou-se visível. Tendo observado estes fatos, verificou que o anel havia lhe dado o poder de se tornar invisível. Ao fim da história, Giges seduz a mulher do soberano, assassina-o, e dessa maneira, assume o poder sobre a sua comunidade.

A alegoria retrata a história de um sujeito bom e virtuoso, sem histórico de ações imorais, indesejadas ou indignas. Porém, ao encontrar um anel, que lhe deu o poder da invisibilidade, ele passou a cometer enormes atrocidades, como traição, assassinato, abuso de poder.

Platão traz a interpretação de Glauco da alegoria. Para este último, Giges representa a essência da natureza humana, que não é virtuosa. Em condições de invisibilidade (quando não ninguém está vigiando) as pessoas tendem a ser antiéticas. Nesta lógica, justifica-se ter um sistema de repressão forte para coibir atitudes indesejadas, pois o indivíduo, essencialmente heterônomo e egoísta, é condicionado pelo meio externo. Thomas Hobbes, no Leviatã, sustenta esta posição ao defender que deve existir um estado forte a fim de coibir ações indesejadas, pois o ser humano, em um estado de natureza, tende a ser egoísta.

Mas esta não é a visão de Platão. Para o filósofo, a ética implica em agir corretamente mesmo quando se é invisível. A ética está relacionada à consciência, e não com a repressão e a coação da sociedade. A moral seria é um diálogo do indivíduo consigo mesmo, um diálogo intraconsciente. Mas o fato é que quanto mais vivemos em uma sociedade repressiva, que constrange seus cidadãos a base da força, menos espaço para a moral. A moral e a policia estão em lados opostos. Uma sociedade sem moral precisa de altos níveis de repressão. Já uma sociedade moralmente superior, precisa de um sistema de opressão mais moderado.

Em um país de motoristas imprudentes, justifica-se a intensa fiscalização por agentes de transito, a colocação de radares de velocidade e a utilização de bafômetros para coibir motoristas alcoolizados. A tentativa de resolver os problemas através da coação é uma maneira muito utilizada pela sociedade atual. Mas estas ações nada tem a ver com a moral segundo Platão. Na visão de Platão, este método de coação possui um risco: sempre haverá um momento em que ninguém estará nos observando.

Notar que um sujeito deixou cair uma carteira no chão e devolvê-la quando ninguém está por perto; devolver a um caixa de supermercado o dinheiro de um troco incorreto; comprar um bilhete de trem, mesmo que não tenha ninguém para lhe cobrar; comprar uma revista em uma banca de jornal, mesmo que não exista jornaleiro. Estas são questões que, de fato, se relacionam com a moral. Situações onde somos praticamente invisíveis. Se fossemos todos como Giges, nas situações tratadas acima, agiríamos incorretamente. Esta é a grande lição que Platão nos ensina.

Parece que a sociedade moderna não comprou a concepção de moral de Platão. Pelo contrário, parece que a visão de Glauco e de Hobbes é endossada, pois é possível perceber um aumento considerável dos meios de repressão por parte da sociedade, principalmente através da tecnologia.

A cada passo que damos o GPS do nosso celular identifica nossa localização. Todo conteúdo acessado pela internet é registrado em algum servidor, bem como cada mensagem de texto ou de voz. Empresas, bancos, escolas, condomínios já possuem sistemas de monitoramento, e em alguns casos, até em nossas próprias residências. A partir do sistema de monitoramento chinês, em poucos minutos, é possível encontrar, a partir da tecnologia de reconhecimento facial, qualquer cidadão que transite pelas ruas. Estas tecnologias estão sendo cada vez mais usados, porque, de fato, tendem a evitar que as pessoas cometam crimes. Por exemplo, a corrupção no Brasil, parece diminuir significativamente, principalmente pelo aumento nos mecanismos de fiscalização.

Dado que o medo da punição tem o poder de coibir os cidadãos, será que no futuro a humanidade irá exigir um chip no cérebro para o monitoramento das pessoas?

A série do NetFlix chamada Black Mirror, nos episódios Arkangel, National anthem e The entire history of you, retrata um futuro possível para a sociedade, caso a tecnologia de monitoramento continue avançando a passos largos. No último episódio citado, os seres humanos carregam um implante atrás da orelha, algo que chamam de grain. Ali fica armazenada a memória. Todos têm por hábito relembrar os acontecimentos. Fazem isso manipulando um aparelhinho sintonizado com o grão. As imagens guardadas são projetadas em telas instaladas nas casas, nas ruas, nos carros.

Estas imagens podem ser utilizadas pela imigração de um país para investigar o histórico de um passageiro, para checar a memória de um suspeito de cometer um crime, para enviar vídeos para pais que desejam monitorar seus filhos, ou até mesmo para descobrir uma eventual traição em um relacionamento amoroso. Para Platão, isto seria o fim da moral, pelo menos se a entendermos como um diálogo intraconsciente do indivíduo consigo mesmo.

Mas vale lembrar que pessoas não podem ser vigiadas pela sociedade a todo o momento. Sempre haverá um instante onde as pessoas poderão cometer alguma transgressão com poucas chances de ser reprimidas. É neste momento que o sujeito movido pelo egoísmo e pelo egocentrismo infringe a lei. Ou seja, quando o egoísmo do sujeito for maior do que o medo imposto pela sociedade, ele tenderá a agir de modo a satisfazer seus desejos, independente dos meios para isto. Neste caso, onde o poder de coação das autoridades é nulo, como coibir o cidadão? A resposta pode estar na educação, que pode fazer com que o indivíduo transcenda a heteronomia e aja de acordo com princípios internos. Aja corretamente, mesmo que seja invisível.

As visões e opiniões expressadas nos artigos são as dos autores e não refletem necessariamente a Política oficial ou posição do grupo AdmEthics

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