Virtudes e tecnologia: Lições esquecidas

Fazia parte do imaginário da Grécia antiga a distinção entre o aperfeiçoamento humano por meio das virtudes e a técnica/tecnologia como uma atividade menor. A técnica era considerada uma forma de “burlar” e até “enganar” a realidade física, criando artefatos cujo simples curso da natureza não seria capaz de fazer, de modo a satisfazer certos desejos humanos. Porém, o desejo infinito era limitado pelo “ser” das coisas, e se valorizava o discernimento entre o que se poderia mudar, motivado pelo desejo, e o que é permanente, independentemente desse desejo. As virtudes eram os hábitos adquiridos e operativos que habilitavam o ser humano a conhecer essa realidade e adequar seus desejos e sua vontade de acordo com ela, tendo como fim último a autorrealização do ser humano. Em outras palavras, o ser humano teria uma vida plena – aquela vida que valeria a pena ser vivida – se conhecesse sua própria natureza e a ordenasse de acordo com a estrutura da realidade. Sabedoria e prudência – que habilitariam o ser humano a conhecer seu cosmos interior e exterior e a distinguir entre o que é falso e o que é verdadeiro – e, a coragem, autodomínio e justiça – que ordenariam seus desejos, pulsões e emoções de acordo com esse conhecimento – são exemplos de virtudes. Tentar burlar e enganar essa realidade humana é o que os gregos chamavam de vícios.

Havia uma hierarquia clara: sem essas virtudes a tecnologia nos levaria, inevitavelmente, a consequências catastróficas. O mito de Ícaro, de certa forma, mostra-nos isso: ele tentou fugir da ilha de Creta com pares de asas criadas por seu pai (tecnologia), que o alertou para não se aproximar demasiadamente do Sol (prudência). Mas Ícaro não deu ouvidos ao seu pai e a cera que unia as penas das asas se derreteu, despencando para sua morte no mar. Certamente que a culpa não foi da tecnologia, mas ela possuía limites que foram desprezados pela insensatez de Ícaro. Deixou-se invadir pelo vício da soberba, que leva às pessoas a acreditarem que possuem um poder que, ao contato com a realidade, revela-se totalmente falso.

Voltando-nos para a nossa época, parece que essa lição está esquecida. As virtudes como meio para o aperfeiçoamento pessoal e da vida humana associada foram substituídas pela aposta na tecnologia. A cultura pop nos dá uma metáfora intrigante sobre isso: o contraste entre o Capitão América e o Homem de Ferro, principalmente no filme Vingadores: Guerra Infinita (Joe Russo e Anthony Russo, 2018).

Tony Stark é o típico homem “pós-moderno”: imaturo, egoísta, inseguro quanto a sua vida pessoal, em luta interna sobre o que é correto fazer, mas de modo a não se comprometer demais… e um gênio da tecnologia. Poderíamos até compará-lo ao Steve Jobs, ícone da geração que acredita que um gadget irá mudar o mundo, modelo empresarial para muitos, mas não é um exemplo de caráter. A armadura de Stark compensa o que lhe falta de virtudes, mas a aposta na tecnologia não proporciona o reconhecimento de seus pares quando ele pretende ser um líder da resistência contra Thanos. Quem consegue fazer isso é o Capitão América. Ele encarna a hierarquia perdida dos clássicos gregos: as virtudes subordinam a tecnologia. O franzino Steve Rogers era, antes de tudo, um exemplo de coragem e determinação (virtudes) e, ao receber o soro (tecnologia), transforma-se no Capitão América. O soro amplificou sua força e resistência e, com elas, suas virtudes. Apesar de ser um dos heróis com menos poderes, ele irá liderar os demais contra Thanos. O reconhecimento se dá mais pelo poder de suas virtudes e de seu caráter. Seus pares confiavam em suas ponderações e decisões, o que não acontecia com Stark.

O horizonte de nosso imaginário atual dificilmente ultrapassa a crença de que as soluções de nossos problemas, em qualquer âmbito, estão a um passo do próximo app ou gadget. No campo da Administração há a aposta inveterada no controle do comportamento humano, por meio de alguma técnica psicológica, design de processos, formas alternativas à burocracia – e o eterno retorno a ela -, ou lições de liderança.

A tecnologia em si não é o problema. Mas a crença de que, ela, sozinha, irá finalmente nos redimir de nossas falhas e problemas – transformando-nos em seres humanos melhores e transformando o mundo a nossa imagem e semelhança – é uma ingenuidade que se justifica pela ignorância de nossa natureza humana e sua relação com a realidade. Sem as virtudes para orientá-la, a tecnologia é apenas uma panaceia que pode se virar contra nós, aniquilando-nos ou tiranizando-nos. É por isso que lições como as de Ícaro, passando por Frankenstein de Mary Shelley, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, HAL 9000 de Arthur C. Clark, e os Vingadores da Marvel Comics não podem ser esquecidas.

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